A mercearia, antiga e tradicional nas suas talhas a mostrarem cereais, com as vitrinas acima a encobrirem parte das paredes, mostrando boiões e garrafas vestidas de pó, ficava no patamar da escada pública que ligava a Lisboa da encosta do Castelo com a cidade plana onde o rio nos séculos atrás chegava. Na época as coisas eram diferentes. As mercearias de bairro vendiam os produtos às gramas; cinquenta gramas de toucinho entremeado, vinte e cinco gramas de banha de porco, (a gordura dos pobres), meio decilitro de azeite. Os produtos eram embalados em papel grosso, (o papel de estraça), e nesse papel lá ficava cinco ou dez gramas do peso…
A escadinha tinha o encanto do colorido dos prédios. Uma escada que recorda passados; lembra pregões de varinas, a característica gaita dos amoladores de tesouras, facas, navalhas e cutelos; e as pessoas, já então velhas, (julgo que nós, os portugueses, raramente fomos novos), deambulam nas suas azáfamas. Os catraios jogavam à bola contrafeitos, descalços, e quando a bola de trapos se escapava degraus abaixo, lá ia a correria de um ou dois, de pés doridos, para a agarrar antes que chegasse aos carros. Tempos de fome sentada. Nas soleiras das portas. A mostrarem-se por entre as vidraças cerzindo com dedos esguios as roupas e as meias. Homens desocupados nas tavernas; um de dois para os menos afortunados, um de três para os abastados do dia; e umas cartadas. Uns olhares de esguelha para as ancas das mulheres mais moças que subiam ou desciam, um cuspo nos dedos para dar as cartas já sebosas. Para quem se chegasse mais para a esquerda e se inclinasse um pouco para a frente, em baixo, no Martim Moniz, pela porta entreaberta da Capela da Senhora da Saúde, talvez se imaginasse um Deus de barbas longas a dormitar nos degraus do altar, junto ao Cristo Crucificado.
O merceeiro, com o seu guarda pó cinzento que lhe cai até aos pés, aberto na frente, a mostrar a corrente de ouro do relógio de bolso metido no colete, encosta-se na parede da fachada do prédio, enquanto conversa com o galego da carvoaria que fica em frente, e que também se apoia na fachada do prédio do seu lado. Falam alto, como é evidente. “Então vossemecê continua a dar por falta das coisas mesmo depois de ter despedido o seu marçano?” – Pergunta o galego. – “É verdade, amigo. Se calhar fiz uma tremenda injustiça ao despedir o rapaz”… “Então e a mulher da limpeza?” – Torna o galego. “Essa não. Nem pensar. Trabalha lá em casa vai para trinta anos. Nem pensar”… “ É estranho!” O merceeiro contrai as sobrancelhas; é como se uma luz se acendesse no seu cérebro. Mas logo diz, como se falasse apenas para si: “É impossível! No entanto”… “teve uma ideia, foi?” “Talvez, vizinho, mas tenho primeiro de ver, pensar melhor, sabe”… O merceeiro voltou para o interior da mercearia.
Nessa mesma tarde, perto da hora do fecho, o cívico entra-lhe no estabelecimento, como é hábito. É um polícia da velha guarda, conhecido de anos. “Viva, amigo António. Perdoe, mas quando chego aqui, é da idade, sabe, esta bexiga.” “Homem, vá à sua vontade, já sabe o caminho!”
Quando o guarda vem da casa de banho, o merceeiro diz-lhe para abrir e mostrar o conteúdo da pasta. O homem fica vermelho. Em silêncio, sem uma palavra, tira da pasta as postas de bacalhau e as latas de conserva. Duas latas, uma posta. Coloca sobre o balcão e, sem uma palavra, sai do estabelecimento. Passados uns segundos um estampido quebra o silêncio da escadinha. Quando António vem à porta o cívico está ali, parte do corpo de bruços nos degraus, um mar de sangue que escorre, uma arma ainda presa na mão…
No dia imediato sai uma pequena e lacónica noticia nos jornais diários. O caso também foi aflorado na rádio…
OS TEMPOS DE HOJE
Vi e fiquei espantado. Foi como se o tempo regredisse, como se a terra ficasse queda, imóvel num espaço eterno. Há mais de quarenta anos que não via tal coisa; que digo, muito mais de quarenta anos, porque, já para o fim da ditadura, semelhantes barbaridades já não se praticavam. Um homem selvaticamente espancado, no meu País, filmado e, possivelmente, posto a correr mundo, a mostrar o que na verdade somos e como somos. Não gostei, sinceramente, é coisa de arrepiar, de ficar com nojo, de recordar um passado que quero esquecer. E depois, no noticiário televisivo, aquele, digo como leigo desses assuntos, aquele general, -só pode ser um general – com aqueles prateados todos a brilharem-lhe por todos os lados; enfeites de farda, ou ouro de tolos, como se queira, a falar de “Força necessária,” como se espancar pessoas fosse, não um regresso ao passado, mas uma “força necessária” para salvar vidas, as não preciosas vidas de uma juventude que se desgarra na ânsia de ter direitos, na vontade de nunca partir, de ficar, na terra que os viu nascer, na terra dos seus, onde estudou, onde se preparou para ser útil, onde está o mundo que conhece, onde acalentaram sonhos de um risonho futuro, a justificar o sacrifício que os pais e os avós fizeram para lhes garantir estudos, cultura, saber.
A Assembleia da Républica, (para quem não sabe, ou simplesmente, não quer saber), é a casa da Democracia, e a Democracia é de todos, e como é de todos é a ela que temos de recorrer sempre que nos negam direitos; e que mais sagrado direito do que o direito ao trabalho, à Pátria, ao Bom nome, à terra onde nascemos?
Dizem que o homem é estrangeiro, um perigoso agitador. Quem sabe. Também Hemingway foi um estrangeiro a combater em Espanha, e, de certo, um perigoso agitador para os franquistas…
Se os nossos tivessem uma terra de leite e de mel, não teríamos certo tipo de agitadores entre nós; seriam gente de outro tipo, possivelmente, bem piores.
O que penso, – e quanto à força necessária e à irreversibilidade da vida e dos sistemas? Penso que as forças necessárias se vão com a idade, e penso que tudo é reversível; é apenas uma questão de tempo. De tempo e de revolta dos Povos a quem os iluminados das certezas roubam o futuro.
Com a perca da força necessária vem, – na maioria das vezes, – o abaixamento de posto. Porque tudo pode ser reversível e de acordo com as conveniências dos poderosos. E um dia, quando o nosso general despido da força e mais experiente das coisas da vida, ao fim de um dia de trabalho, cansado, chegar a casa, – e porque tudo é reversível, a casa de então pode muito bem ser uma parte de casa alugada ali para os lados da Morais Soares, e a esposa lhe disser: “olha, o dinheiro acabou! O último que tinha gastei em banha de porco para a comida! O merceeiro embrulhou num papel que pesa mais do que a banha!” O nosso ex-general, irá dar um giro pelas retretes das mercearias, a saber das latas. Sinceramente, espero muito que me engane!
Só mais um segundo, tenham paciência. No mesmo dia do acontecimento, ou no dia imediato, UM SENHOR DOUTOR ADVOGADO esteve na televisão a falar da legalidade dos agentes policiais infiltrados e à “paisana.” Ainda bem que tais pessoas existem. São pessoas de bem e servem e protegem as sociedades. Mas, sabe, doutor, podem ter vários nomes, consoante as tarefas que estão a desempenhar.
No meu tempo, no primeiro de Maio, ali pelas bandas do Rossio e dos Restauradores, quando arrancávamos as pedras dos passeios para nos defendermos da policia, chamávamos aos “paisanos” esbirros, bufos ou caceteiros! Isso foi no meu tempo; e como tudo pode ser reversível, iremos voltar a esse tempo?
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Dentro do estilo de escrita peculiar do autor, que me dá a honra da sua amizade, um desafio à imaginação de um futuro que poderá ser o passado aqui retratado, com toda a fidelidade. Com o meu neto de meses ao colo, não desejo para ele, nem para ninguém, um futuro como este. Por eles, fiquei em casa, para que os pais pudessem participar na manifestação que pôs fim ao delírio governamental de tirar aos trabalhadores em favor dos patrões.
É um belíssimo texto, que me faz voltar aos difíceis tempos da infância e me faz temer pelo futuro.
Um abraço, Amigo Solá
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