No centro da parede, um crucifixo de grandes dimensões. De madeira negra, com um Cristo de cobre escurecido pelo passar dos anos. Ali estava Deus, inquestionável, eterno, a tomar o seu quinhão de sacrifício para salvação do pecado original e de todos os outros que se lhe seguiram. À direita da sua mão, representado em retrato de fundo negro, um dos seus ministros na Terra. Na sua esquerda, o seu contabilista, o mentor dos seus princípios, vestindo de negro, posto de perfil na fotografia, gravata preta em camisa branca, e ao lado a fotografia de um senhor com farda branca, boné de pala, mostrado de frente, uma figura apagada onde não se percebia inteligência. E era assim a Pátria, posta em três retratos e um crucifixo, produzidos em série e espalhados pelas salas de aula das escolas primárias, de um qualquer centenário, ditado pelas conveniências da História que convinha ao regímen ensinar.
A Pátria, pois, cabia na parede da sala de aula, do lado da porta, umas vezes com uma bandeira de pano gasto, onde o verde já de há muito perdera a esperança, e o vermelho que mais passava por sangue seco, enrugado em meio de um escudo ornamentado de pequenos castelos. A bem dizer uma Pátria pequena. Feita ao jeito deles, ajeitada de modo a caber no cú de Judas em que termina a Europa, a arregalar os olhos com o pavor do mar desconhecido, onde os monstros e as malquerenças abundam.
Antes do “Esquerda direita, um, dois, três, volver,” o professor dissertava da grandeza e do destino de ser português, e para exemplificar, desdobrava um mundo planificado em mapa, com as rotas dos descobrimentos assinaladas a traço negro, terminado em ponta de seta. E lá estava, no cimo, um rectangulozito a coser a Europa com o Mar Oceano. “Vejam a diferença, este mundo tão grande e nós tão pequenos; os gentios a quem mostramos Cristo. As selvas que desbravamos, o conhecimento que transmitimos”.
Depois do pequeno discurso os alunos perfilavam-se. Faziam a saudação à romana, braço esticado para a frente com a palma da mão virada para baixo, a olharem a parede onde estava posta como decoração de montra, a Pátria, umas vezes bafejada por uns raios de Sol, que, peregrinos na própria terra, vinham a ver a marcha dos moços, joelhos levantados em ângulo recto, cabeça erguida, como convêm a um pequeno dono do mundo. Dezassete moços ao todo. Calçados de alpergatas feitas de uma lona que nos lados magoavam os pés, por isso postas apenas para entrar na escola, calçadas para marchar, ao ritmo de uma voz de autoridade inquestiunada, a marcar o ritmo, repetindo: Um, Dois, Três, e voltando a repetir. No final cantavam os hinos. Primeiro o da mocidade, logo o nacional, com uma dona Graciete sentada na frente, quieta, inexpressiva, sempre na mesma posição, sábado a sábado, uns olhos pasmados das olheiras, uns lábios cerrados, sem sorriso, umas mãos esguias e sem vida aparente, dedos entrelaçados, onde se via uma aliança que assinalava um marido que nunca apareceu.
Depois vinha a liberdade de voltar a ser garoto, apenas por uma meia hora, o tempo suficiente para chegar à choupana ou ao barco, nas andanças da faina, no rio, perto da margem. Daquela Pátria que ficara na parede da escola, no lado da porta, ali, pelos arredores do Escaroupim, nem rasto. Como se pode imaginar uma coisa assim, desmesurada, tão grande, com tanto mar, uma enormidade daquelas, a partir de um mundo tão pequeno, saciado de água de rio e de frescas sombras, com um Sol a reflectir-se nas escarpas que descem para as águas, serenas, pinceladas de verde-escuro, nos carreiros de pé posto, feitos ao jeito das andanças dos homens?
Para os moços, o sábado era o melhor dia das aulas. A escola terminava cedo, quer o tempo fosse de Sol ou de caretas de chuva, aí pelo meio da manhã, a tempo das foteboladas e das correrias, dos concursos de ver quem mija mais longe, a fazer arco, sobre as falésias, ou na língua de areia de uma praia estreita, para dentro do rio, sem tocar nas rochas ou nas conchas; concurso assim vinha dos tempos de trás, de muito longe, desde que o governo entendeu por bem abrir por ali uma escola; fora feito passado de pais para filhos, sem palavras, e partilhado mesmo com quem não frequentava a escola. Quem faz o arco mais pequeno é quem mija na cama! Tocar nas rochas também não vale. É coisa de meninas, que só fazem para baixo, nunca para cima. Porque será? Pergunta dos mais ingénuos. Então não sabes, nunca vistes? O quê? A rata! Rata, que rata? A que as raparigas têm! És mesmo ceguinho. Nunca viste, foi? Bem, já, uma vez, assim a espreitar! Não viste nada! Vi, sim, e não era nenhuma rata!
Os moços repartiam-se por grupos. Coisa de simpatias e de amizades, ou mesmo de vizinhanças, até relações de família, primos, mas raramente, irmãos, (vá-se lá saber porque são raros os irmãos que gostam de andar juntos).
O grupo do João Boa Brisa tinha cinco rapazes, o Óscar, pirralho por alcunha, o Licas picha murcha, ele, João, o baixinho, Mário de seu nome, e o Firmino, perna curta, que chegava sempre em último nas correrias, e tinham como principal especialidade o rapinanço de fruta pelos pomares e pelas vinhas de beira de estrada.
Ir à chicha, fazer uma chichada, saber escolher quem vai no dia rapinar, ou quem fica de olho, a avisar do homem; definir as tácticas, estabelecer os horários e determinar os caminhos para a fuga desenfreada, a tirar o rabo do caminho dos bagos do chumbo disparado pelas caçadeiras, era a tarefa atribuída ao Firmino. Trabalho sério este da chicha. Sem uma boa chicha não havia fruta da época, e sem fruta da época não havia vitaminas para se puder crescer. E se não se crescer quem vai conseguir satisfazer os trabalhos árduos que aquela nesga de Pátria posta na parede da escola, por cima da secretária da professora, e ao lado da porta de acesso à sala de aula, exige? Ninguém, claro! Sem chicha não à Pátria! A Pátria escafodeu-se por falta de fruta, não cresceu, antes pelo contrário, minguou. Foi por isso que era tão grande e de repente ficou assim, tão pequena, que cabe naquele pedaço de papel brilhante que se chama mapa, e que o professor Mário desdobra e mostra todos os sábados.
Então o Fuinha (o dono da vinha junto ao carreiro), que antes de gritar dispara o chumbo, é inimigo da Pátria! Pois então, claro que é! Sem moços fortes não temos soldados valentes, dos que vão à guerra e só dão, nunca levam. Primeiro os soldados olham os inimigos (que são gente estranha e diferente por causa da cor da pele), nos olhos, e esfregam dois dedos, o indicador e o do gesto feio, que fica mesmo ao lado, (paredes meias), nos lados do nariz, para os irritar, – Explicava o Firmino, do cimo da sua autoridade de comandante chicheiro, – e depois, há rapazes, vão-se a eles e é só aviar! Soco e pontapé, tiros e navalhadas, até dentadas, gente, que não existe no mundo soldado valente como o português, lá diz o meu pai, que lhe contava o pai dele, que foi à guerra de catorze, a mando da república.
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