Apanharam o eléctrico ali para os lados do caminho da Sé, na rua que esconde no subsolo os restos da Lisboa romana. Para trás a calçada que leva à António Maria Cardoso, de má memória, para a frente, reflexos de história em cada pedra e em cada fachada de prédio. O carro partiu aos tropeções na linha, feito de chiadoras de carris e de telins saídos dos pedais do guarda-freio. A Lisboa do marquês vai dando lugar à Lisboa de mais longe no tempo. Ao subir pela Sé é como se tivéssemos acabado de ver na sua igreja um santo António profano a casar virgens vestidas na cor da dor. Mas a nostalgia percebe-se em cada sombra de árvore aquietada na sua caldeira feita de terras negras, no colorido das fachadas, na roda grande que o guarda-freio roda para acautelar as descidas. Aqui acontece terra de mistérios. Há nostalgias e temores vislumbrados nas janelas gretadas das casas, como se olhos de assombro se escondessem nas penumbras de dentro, a espreitar-nos por entre os manjericos e os gatos cinzentos enroscados à babujem dos restos de Sol. O carro subiu e subiu, por declives de travessas incríveis, de ruas impensáveis, por troços planos onde a luz está a par das sombras, numa cumplicidade sem desassossegos. Onde o contraste da luz e das sombras é, contudo, mais evidente e perceptível, é nas escadinhas que de quando em quando nos saltam dos lados do caminho, umas amarinhando num subir lento de corpos cansados, amparados nos corrimões de ferro pintados a verde, ou nos carreiros de degraus que se afundam colina abaixo na voragem de abraçar as águas quietas do rio.
Por fim apearam-se numa paragem situada mesmo à frente de um miradouro. A acarinhar os bancos de madeira onde se permite o descanso dos corpos no tempo preciso para arregalar os olhos no espanto das cores, um jardim pequeno, minúsculo até, com relvados, flores e arbustos. No outro lado da rua, saltando sobre as linhas do eléctrico, uma taberna com fundura de túneis e um balcão com tampo de pedra partido. Acomodaram-se no banco a ver por baixo os telhados das casas de Alfama a descerem para as águas na lentidão de declives, a terminarem na aventura do rio. Nas muralhas, chaminés de barcos convidam ao sonho da viagem, e depois, se não partimos, convidam-nos aos remorsos que nos chegam ao negarmos o mundo. Partir e viver. Ficar e morrer na quietude dos silêncios e das dúvidas. O labirinto das vielas escondidas do Sol de fim de tarde, Sol de oiro revestido, deita-se no vermelho das telhas que param nos remates de testa do seu fim, pintadas a branco de cal. Mais abaixo, caindo a pique das fachadas, não chega a luz. É um prelúdio da noite que se prepara no poente. Onde pára Deus que não viu nem abençoou esta terra? Dali, do miradouro, este pedaço de Alfama é como duas ou três mãos cheias de dedos abertos a morrer num rio largo de reflexos de prata vestido. Ao fundo, para a esquerda, a curva quase imperceptível do rio que foge para Espanha; para o outro lado um oceano onde muitos já perderam a esperança de voltar. Das casas, um silêncio de dores e de medos, de invejas, de choros e de raivas. Gente que sofre dentro da prisão da carne.
Tibério inclinou-se para a frente. Apoiou ambas as mãos no varandim que o separa do abismo. Pelos seus olhos absorveu a aparente paz chegada daquele palmo de terra. Tão parecido com a minha Itália!”, pensou…
De baixo chegava-lhe uma policromia de cores esbatidas pelo cansaço de séculos; era o belo vindo da sensibilidade do colectivo de um povo que aproveitou cada pedaço de chão para plantar as suas casas, ao acaso da ocasião, do momento, com fachadas desafiantes das geometrias, rebatidas em planos aparentemente desconexos, em remate de ruas estreitas e assimétricas, ou de escadas a vencer desníveis impossíveis. Um quadro pintado pelas mãos, pelos olhos, pelo suor do trabalho violento de tantos homens pequenos, aquietados nas vãs necessidades de viver, a fintarem as negaças da vida, a desafiar o eterno destino de não ter.
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