Texto de Ganância, romance (publicado no sitio do livro)

(…)
membros da família aos valentes apertões das gargantas, a envenenar o pobre do cão, a meter-lhes na cama a cabeça de um cavalo ensanguentada enquanto dormiam, a enviar-lhes um peixe embrulhado num papel de jornal, mas seria possível a eficácia de todos estes processos (amplamente comprovada pelos muitos anos de práticas, mesmo séculos) tratando-se de um governo legitimado pelo voto secreto do povo? E um governo de um país distante, apesar de insignificante, um país com história e uma cultura? Tinha as suas dúvidas. Tibério, se por um lado lhe agradava o poder, a magnitude do poder sem limites, parco de regras, o poder divino transmitido pela força e pela impunidade do dinheiro que tudo permite numa ilógica de força que aparentemente não se vê, é como um fantasma invisível que a todos corrompe, por outro, habituado à obediência cega do cumprimento cabal das ordens, desenvolvera uma consciência pessoal que nunca se imiscuía nos assuntos do trabalho, mas que lhe ditava as regras para uma conduta social razoavelmente aceitável na sociabilidade do mundo dos homens. Tibério, se tivesse constituído família, seria capaz de chegar a casa no final de um dia exaustivo de trabalho, depois de ter apertado o gasganete a um ou dois dos rivais do seu patrão, e num esfregar de olhos passar à figura paternal de um dedicado chefe de família, enérgico na prática das suas obrigações como pai de família, orgulhoso dos êxitos alcançados pela sua prole, marido dedicado e amantíssimo parceiro activo nos assuntos do lar, interveniente nos serões de família, preocupado com os resultados escolares obtidos pelos filhos.
Contudo (e esforçando-se por entender como se processava a governação de determinados povos), não se sentia muito diferente dos governantes do pequeno país onde fora colocado. Também eles eram capazes de chegar a casa após um dia exaustivo de trabalho, dentro de um carro topo de gama, conduzidos por um motorista fardado a rigor, precavido com o conforto da coronha da arma aconchegada junto ao sovaco, confiante da solidez dos vidros e da chaparia anti–bala, um dia em que tinham (por obrigação da arte do seu ofício), minguado os parcos salários da população triste e cansada de dar, dar, dar até ao cerne da alma, dar o que se tem agora e também o que se vier a ter num futuro mais ou menos próximo, dar a vida se preciso fosse, o sangue das veias e o comer dos filhos, dar a sanidade mental que aos poucos vai vencendo os novos escravos, para compensar mais um erro de cálculo feito pela governação.
Qual era então a diferença entre ele e essa rapaziada vestida com fatos importados dos melhores alfaiates do mundo, que na prática apertavam os gasganetes dos seus compatriotas mais desprotegidos (tal como ele, por elementares questões de trabalho, negócios, dever de ofício, nunca por prazeres mórbidos inconfessados o fazia aos inimigos do seu patrão), e logo, paredes dentro do lar, templo sagrado da família, se transformavam ou se reabilitavam aos seus próprios olhos, ou simplesmente se abstraiam dos problemas do trabalho, deliciavam-se com as massagens que as esposas com todos os desvelos que o carinho de gueixas amantíssimas lhes impunha, faziam nos seus ombros contraídos pela dureza do dia.
Não havia portanto, aos seus olhos, qualquer diferença entre o clã a que pertencia e que se dispunha a defender com o sacrifício da vida, e os clãs que se movimentavam nas esferas do poder dos governos das nações. Emprestadores e devedores eram iguais tanto nos comportamentos como nos escrúpulos. O país mais pobre do mundo tinha a maior dívida externa do mundo. Ora se o país mais pobre do mundo o fosse por ser também o credor da maior dívida do mundo seria compreensível, o contrário não. Os governantes discursam pedindo sacrifícios ao povo, quando o correcto era o povo perguntar aos governantes: “Então, se depois de pedirmos tanto dinheiro emprestado, ainda assim empobrecemos desta tão dolorosa maneira, temos o direito de lhes perguntar onde está o dinheiro que devemos, como foi aplicado, e como nos violentam de forma tão selvagem em nome de uma dívida que nenhum de nós fez, e de cuja real dimensão e gravidade nada sabíamos? E a isso os governantes do momento responderiam: “não fomos nós, foram os outros, os do governo anterior!”, e os governantes anteriores, provenientes do partido político A ou B, C ou D, diriam, em defesa da causa própria: “Nós herdamos a situação que os senhores nos deixaram quando estiveram no poder na legislatura anterior à nossa!” E o povo, no seu legítimo direito de ser esclarecido, no sagrado direito de indignação que cabe às pessoas colectivas de bem (ou mesmo às pessoas singulares), em defesa da honra de povo a que o mundo, no seu eterno escárnio e de indiferenças, chama de caloteiro, de improdutivo e de irresponsável, iletrado e sem inteligência colectiva, insistiria na questão simples de saber o motivo porque deixaram passar tantos anos sem que o informassem das monstruosas dívidas a que tem de acudir se quer continuar a ter uma Pátria, uma casa, um lar; e quanto aos supremos juízes da Pátria, esses que nunca comentam o que quer que seja de importante ou não, ou porque não é o lugar devido, ou porque esperam que outro poder fale primeiro , afinal para que servem?
Ainda outra questão martelava nos cérebros cansados dos pacatos e simplórios cidadãos daquele país, e que era tirar a limpo se determinadas agências estavam ou não a ser correctas nas suas avaliações; muitos diziam que não, que se tratava de perseguição, de influências movidas por países rivais, e aqui surgia a premente necessidade de tirar a limpo, de forma cabal e definitiva, se a dívida existia mesmo, se não existia, se se tratava de uma perseguição movida por alguém que não tinha ido com a cara do negociador enviado (essas coisas acontecem), se o valor era assim tão astronómico, e, se confirmasse o montante, ainda faltava averiguar as razões porque o emprestador tinha facultado a uma modesta fabriqueta de tijolos uma quantia digna da grandeza de uma poderosa e moderníssima central atómica. As dúvidas eram muitas e os esclarecimentos nenhuns. A poderosa máquina de propaganda que o povo simples permitira que os políticos ardilosamente montassem ultrapassava a fábrica de mentiras edificada pelo Nacional-socialismo alemão na segunda grande guerra mundial, e com larguíssimos proveitos; cada ministro, secretário de estado, ou subsecretário, cada agente político funcionava como um brilhante e talentoso propagandista, e ao povo cabia apenas o papel de pagar, pagar, pagar, ou revoltar-se e pugnar por todos os meios possíveis pelos seus direitos à vida e ao seu bom nome. (…)

Sobre jsola02

quando me disseram que tinha de escrever uma apresentação, logo falar sobre mim, a coisa ficou feia. Falar sobre mim para dizer o quê? Que gosto de escrever, (dá-me paz, fico mais gente), que escrever é como respirar, comer ou dormir, é sinal que estou vivo e desperto? Mas a quem pode interessar saber coisas sobre um ilustre desconhecido? Qual é o interesse de conhecer uma vida igual a tantas outras, de um individuo, filho de uma família paupérrima, que nasceu para escrever, que aos catorze anos procurou um editor, que depois, muito mais tarde, publicou contos nos jornais diários da capital, entrevistas e pequenos artigos, que passou por todo o tipo de trabalho, como operário, como chefe de departamento técnico, e que, reformado, para continuar útil e activo, aos setenta anos recomeçou a escrever como se exercesse uma nova profissão. Parece-me que é pouco relevante. Mas, como escrever é exercer uma profissão tão útil como qualquer outra, desde que seja exercida com a honestidade de se dizer aquilo que se pensa, (penso que não há trabalhos superiores ou trabalhos inferiores, todos contribuem para o progresso e o bem estar do mundo), vou aceitar o desafio de me expor. Ficarei feliz se conseguir contribuir para que as pessoas pensem mais; ficarei feliz se me disserem o que pensam do que escrevo… José Solá
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