Mas voltemos à diáspora, ao regresso, às boas novas, às más novas. Naquela manhã de lusco-fuscos comprometedores, os vigias, a mando do infante, não do herdeiro, colocados no cimo das falésias de pudim esticadas para o céu verde, olhos esgazeados de tanto tentar ver, patas firmes no chão, mãos nas testas fazendo de palas, ou de binóculos, ou de holofotes sem luz, começaram a gritar de uns para os outros, ó daí! Tu estás vendo o mesmo que eu? E lá do fundo, da outra encosta, do outro pudim, uma voz que respondia, ou que voltava, ou que gritava: Eu? Não! Eu não vejo népia, afinal o que é que estás vendo? E o outro, o deste lado, o de cá, dizia baixo para si, curioso de merda, tu queres é ganhar as alvíssaras todas só para ti. E depois alto, projectando a voz: Ali, ao fundo, aquela coisa que brilha, que vem para cá, ainda escondida na curvatura da terra! – Já sabiam que a terra era redonda, os Olés não, – Há, agora sim, já vejo, parece um fogo-de-santelmo no topo de um mastro, aceso por alguém que levou isqueiro! Levou o quê? Isqueiro! Tá visto que és da província, és dos saloios? Sim!
Os lusco-fuscos comprometidos empurrados pela mão da luz vão-se escondendo para o outro lado da terra – agora que já descobrimos que a terra é redonda já se pode falar assim, antes não se podia, – e as caravelas estão chegando, primeiro os fogos de santelmo, depois os mastros, logo os paus das velas latinas, os tentilhões de papel de jornal batendo as asas já cansados por cima de tudo, logo a seguir os bojos, aquele bater compassado que ainda não se percebia, eram as chicotadas caindo no lombo dos calhaus pretos que puxavam, corpos inclinados para a frente, mãos calosas agarradas às cordas, navegando, navegando sempre, e os pés dos marinheiros Abrunhos escorregando nos seixos rolados do mar sem água, com a pressa de chegar, com a pressa de abraçar, com a fome de contar, com a ganância de ter. Alguém correu a pedir as alvíssaras ao infante que não era herdeiro e a levar as boas novas, as más novas, as desgraças do reino, as tristezas que vinham de lá, das distâncias, das lonjuras do mar sem água mas já com lágrimas de sangue, com fogos adivinhos de guerras, com pez e fogo, com bombardas que iriam ser construídas à pressa, com espingardas e com setas, com colombinas e com machados. Navegar é preciso, trazer é preciso, roubar é preciso. O vigia ruivo com sardas no lombo correndo direito, vindo do infante, gritando de longe, molhado de Sol, curvado de sede, sedento de ter, que vem gritando sem parar, primeiro não se percebe, parece uma canção de amor, de pois vem mais perto, mais e mais perto, e grita e grita: as alvíssaras, meu senhor! Tenho as alvíssaras, trago as alvíssaras, vai repartir por todos meu senhor? O quê? Pergunta o arrais da chalupa que bolina rente à praia à espera das caravelas, das naus, dos capitães do mar oceano que estampa sortilégios e sonhos, que faz brilhar os olhos, que leva as fêmeas a deitarem-se de costas nos seixos da praia, as seis patas para cima, prontas para ficarem prenhas e depois saciadas da fome, vendo os bichos-de-conta que correm na praia fugindo do Sol. O quê? Pergunta de novo o arrais da barca, olhos tontos de espreitar os bordos, de manobrar a bolina, de puxar as cordas. O quê? As alvíssaras, meu senhor! As alvíssaras!
Os capitães das naus, colados nas amuradas sustidas nos sovacos dos marinheiros, olhos a ver e ver a terra da pátria que volta num abraço de tenaz, lá vem! Lá vem! Corram rapazes, corram! E os chicotes zunindo em estalos sonoros excitando os pretos que puxam, puxam, gemem, riem, sofrem, sopram vendavais de raiva saindo das ventas achatadas, berram canções esquisitas numa voz timbrada e forte, estranham a terra, estranham o céu, céu da cubata não é assim, céu da cubata é céu, tem vida, tem cor, canta quando preto está triste, chora quando preto chora, ama quando preto ama, céu da cubata é céu do mundo, este é céu desta terra. Onde estamos? Porque estamos? Que fizemos? Porque nos batem? Porque nos querem? Já estão próximos, já se vê as proas e os olhos pintados nos cascos para atrair os bons augúrios, já as lágrimas de sangue ficaram perdidas nas entranhas do mar sem água, já o Adamastor dorme, já as sereias cantam outros cantos e namoram outras gentes, outros bichos, outros sonhos, já as fêmeas abrem as patas pedindo vida, as alvíssaras do infante estão no saco feito de folhas de tristeza que foi entregue ao arrais da chalupa que agora puxa o batel do infante que desceu à praia, que embarcou na praia, que voltou à praia, já o infante admira o lombo daqueles pretos calhaus que puxam cordas e faz conta à fortuna, pensa no lucro, avalia os resultados do investimento. Já o infante olha os pretos olhos nos olhos, apalpa-lhes os músculos elásticos e fortes, sente o macio das peles que não são peles, são planos de rocha, admira os dentes a pensar na idade, olha o carvão dos olhos e sente a volúpia, o prazer, o amor que sobe, a ânsia de ter, possuir, sofrer, amar sem ver, no ventre da caverna da vida, preto ao lado, preto que abraça, preto que já não chora, ama.
O Rei no seu campo de liças treinando para os torneios recebeu a notícia, levada pelo estafeta real que correu três dias e duas noites sem parar montado no seu cavalo de pau, deu alvíssaras e evocou os milagres do céu, mas o cavalo segredou-lhe baixinho, orelha com ouvido, boca com boca, olhos com olhos, provei à liça do mundo e esquecei as vãs glórias, desafiai em valentia os gentios e vencei as guerras, dilatai a fé e trazei o lucro, pelejai com denodo e ganhai o mundo.
Que quereis dizer com isso, meu belo cavalo amado? Não vos iludais, senhor, tal como a rainha vos oferece filhos fáceis, também as glórias fáceis são efémeras! Lutai com ardor pelo sal amargo que vem do suor das mãos que trabalham, esquecei as sedas e os cetins, vede quão belo é o mundo quando o ganhamos! Mas o Rei viu a glória e esqueceu o cavalo, o dinheiro da glória compra cavalos, os cavalos não compram glórias, só emprestam sonhos.
O Rei ordenou três dias de festas, de júbilo, de sonhos de quimeras de ter, e com a corte saiu à praia, a ver, a Rainha na sua carruagem de trevas puxada por borboletas pariu mais um filho, e sorrio, vendo o Rei contente montando o seu cavalo travesso, seguido do povo que corria e gritava, vamos à praia a ver!
E lá estavam, fundeadas nos seixos lisos do fundo, sem velas e com os tentilhões descansando pousados no topo dos mastros. Os capitães contavam os fardos que os pretos carregavam para o bojo dos batéis pequenos, por cima de pranchas de pedra e logo os arrais alinhavam a carga, no fundo dos batéis, e os escriturários reais tudo registavam em folhas de pergaminho usando tinta de sangue. Os segredos da navegação, por onde iam, a onde tinham chegado, com quem haviam falado, com quem tinham dormido, o que tinham comido, a quem tinham perguntado o caminho, quanto tinha custado, porque tinham voltado, tudo isto era fechado dentro de arcas trancafiadas com correntes e fechadas por fortes cadeados. Só depois vinham a terra, guardados por Abrunhos fortes armados de longas espadas e rijas lanças, e logo depois iam a dar graças, a pagar promessas, a comprar vinho, a amar fêmeas, a rever o reino.
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