( Último excerto )
Celeste chega ao Hospital mais cedo do que o habitual. Entra no Laboratório, abre gavetas e armários à procura de qualquer coisa. Está nervosa e impaciente. Olha de vez em quando para a porta controlando a entrada de alguém. Suspira ansiosa ao encontrar o que procura. Guarda na mala e sai para a Sala dos Enfermeiros, esperando a chegada do médico. Não veste a bata branca como habitualmente. Entretém-se a folhear umas revistas, como se fosse uma paciente à espera de consulta. Olha para a mala com insistência, esboçando um sorriso glorioso. Ouve os passos do médico a subir as escadas. Aguarda que entre para o seu gabinete. Cinco minutos depois Celeste bate à porta e pede para lhe falar.
– Doutor Alberto Carlos, eu estou muito doente, cansada, nervosa, com um esgotamento, eu sei lá o que tenho e precisava que me desse baixa durante algumas semanas para me recompor. Agradeço-lhe que me receite qualquer coisa para ver se isto melhora, está bem, Doutor Alberto?
O médico concorda em conceder-lhe a baixa, e oferece-lhe os medicamentos que acha essenciais para o tratamento. Na posse do documento, fundamental para garantir a sua ligação profissional ao Hospital, Celeste levanta-se, olha o médico fixamente e em tom enfurecido, começa:
– Senhor Doutor Alberto Carlos. Trabalho neste Hospital há mais de dez anos sob a sua responsabilidade. Confessei-lhe noutro dia o amor que sinto por si e que nunca mereceu uma simpatia da sua parte. Fui a mais dedicada enfermeira que já teve e eu acho que fui enganada, trocada, traída por alguém que eu sei muito bem quem é. Eu tenho todo o direito de exigir um pouco de respeito. Mas Senhor Doutor Alberto Carlos, eu estou-me nas tintas para si, seu galã de meia tigela, convencido que é um grande conquistador, mas não passa de um paspalho que se deixa cair nas artimanhas de miúdas que querem subir na vida à sua custa. Estou farta de aturar gente louca. Estou farta de ingratidões. Estou farta de ser a boazinha que faz as vontadinhas a toda a gente. E depois? Depois um pontapé no cu, e lá vai a parvalhona, a idiota da Celeste para o caixote do lixo. Estou farta, farta. Não preciso de si para nada. É um monstro. Não vale nada, doutorzinho de trazer por casa! Sejam muito felizes e tenham muitos meninos. Adeus!
A Velha Celeste morreu! Viva a Nova Celeste.
Alberto ficou atónito. Não teve capacidade de resposta. Apenas percebeu que ela não está bem e carece de um terapia adequada.
Pega na mala e sai de rompante pela escadaria. Chegada à rua dirige-se a uma cabine telefónica. Precisa urgentemente de falar com Maria.
*****
Na sequência do telefonema de Celeste, Maria dirige-se ao Café onde habitualmente se encontram. Vai pensando pelo caminho o que quererá ela depois daquela última conversa tão estranha. Há na Celeste qualquer coisa que não entende. Mas ela já não compreende ninguém. Aguarda ansiosa a sua chegada. Entretanto pede um café para animar, tira da sacola um rebuçado de mel. Poucos minutos depois Celeste entra e cumprimenta secamente Maria. Sarcasticamente pergunta:
– Então como vai a mamã mais querida da cidade? O papá deve estar muito contente, não deve? Ele é um querido para as criadinhas de servir, jovens como tu. Vais ter assistência médica permanente. És uma rapariga cheia de sorte…
– Celeste, não consigo perceber as suas intenções. Eu fui sempre uma amiga sincera e tenho muito a agradecer por tudo que fez por mim.
Maria, nervosa, levanta-se para pedir um copo de água ao balcão. Celeste aproveita o momento para meter na sacola de Maria uma pequena caixa metálica atada com um elástico.
– Bem, Maria, estou farta de ser uma parva que ajuda toda a gente e depois deitam na valeta.
A Velha Celeste morreu! Viva a Nova Celeste!
Espera só um pouco que eu vou ali fazer um telefonema urgente e não me demoro.
Passam mais de quinze minutos e Celeste não aparece.
Através da montra pode ver-se todo o movimento da rua. Entretanto pára em frente da porta do Café um carro da Policia, donde saem dois guardas que se dirigem directamente a Maria. Por momentos ela deixa de ver com nitidez o que a rodeia. Uma sombra tolda-lhe a visão. Sente-se desmaiar. Pedem a sua identificação. Gozam pelo facto de não ter averbado no bilhete de identidade os nomes de pai e mãe.
– Estamos a perceber tudo. Com que então filha de pais incógnitos! – escarnecem os imbecis dos guardas.
– Ora mostra lá o que tens aí no saco, oh trinca espinhas.
– Só tenho coisas sem importância, senhores guardas.
– Despeja o saco em cima da mesa, já, e deixa-te de merdas, ouviste? Não chateies, que a gente conhece muito bem o género. Não te armes em parva e com ar de santinha, porque não fazes milagres. Despacha-te que temos mais que fazer. Tens ar de sonsa mas não enganas ninguém. A gente conhece bem o que a casa gasta! Despeja a merda da sacola e já. Não me irrites que eu perco a cabeça com facilidade e ainda levas um estaladão nessa fuça que ficas a ver estrelas numa noite de breu. Rameira do caraças.
Maria esvazia o saco e para sua surpresa surge uma pequena caixa de metal que ela nunca vira. Um dos guardas abre a caixa e pergunta se sabe o nome do que está lá dentro. Ela responde que aquilo não é dela. Tem a certeza absoluta. De repente vem-lhe à memória a traição de Fernanda com o rosário na Casa de Acolhimento.
– Pois, isto é droga, minha queridinha, meu amor adorado! Vais connosco para a esquadra e depois segues para a prisão, onde vais passar férias grandes. Oh Pureza, podes contar com uns anos de choldra. Toca a andar, e depressa, sua enfezada. Se tivesse um corpo assim nem saia à rua com vergonha. Toca a andar, mexe as canetas, que nojo de gaja, chiça.
Maria entra para o carro da Policia como se fosse um autómato. Já não consegue pensar, nem gritar. Está tolhida por uma angústia que não a deixa sequer chorar. Sente-se como uma pedra, insensível e desprezível.
Depois de ser ouvida na esquadra, Maria é transportada para a cadeia de mulheres. Vai esperar julgamento por tráfico e consumo de droga. Sentada no banco de trás da viatura, acompanhada por um guarda, Maria tenta perceber o que está a acontecer. Quem foi que a voltou a trair? E coloca as mãos suavemente sobre o ventre num gesto de protecção e amor.
José Eduardo Taveira
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