( 4º EXCERTO DO ROMANCE )
Com a chegada do Inverno voltam as chuvas e o frio que penetram nas paredes e agridem as meninas carenciadas de roupa e calor. A solidão é ainda mais amarga. Sentir o frio do Inverno e o gelo do isolamento. Estar entre gente que não se olha nem se fala. Passar horas, dias, semanas, meses num vazio penoso, sem que surja um instante de expectativa para um futuro diferente.
Maria só pensa em sair dali. E quer que o seu desejo seja realidade. Começa a controlar as entradas e saídas do empregado da mercearia que abastece o Orfanato e a movimentação das freiras. A porta da rua está sempre trancada, mas enquanto decorre a operação logística fica escancarada durante breves minutos.
– É só esperar pelo momento certo. – decide.
Maria resolve partilhar com Laurinda o seu segredo. E quem sabe, fugirem as duas. Ela é a única pessoa que considera ser merecedora de saber da sua intenção, mas não mostra entusiasmo pela ideia. Entretanto, sente-se amedrontada, mas tem de resistir. Afinal, já é uma mulher! Tenta disfarçar, trocando um sorriso com Laurinda.
*****
Será hoje.
O sol tinha nascido radioso como a saudar a partida de Maria. O sino já tocara para o levantar. Sete e meia.A última noite demorou séculos a passar. A partir de hoje deixará de ouvir os malditos sinos e as vozes esgazeadas daquelas mulheres austeras, enfadonhas e por vezes cruéis na forma como tratam as crianças e as jovens. Está cansada. Mas tem de concentrar todas as forças para executar o seu plano. Quando estiver lá fora, verá o que fazer. Olha para Laurinda que parece adormecida. Sente tristeza por não partilhar com ela a emoção que está a viver. Se tudo acontecer como nas últimas semanas, o rapaz da mercearia bate à porta por volta das oito horas da manhã. Uma freira vai abri-la e ele dirige-se três ou quatro vezes à carrinha para buscar os cestos que transporta para a despensa da cozinha. Entretanto a porta fica aberta. A freira encarregada de conferir as compras está na despensa a receber as encomendas. Maria tem tempo suficiente para sair sem que ninguém a observe. Sente quase uma agonia, um aperto na garganta. O seu corpo transpira de agitação. A sua cabeça está cheia de tanta coisa, que não tem espaço para pensar. É uma mistura de sentimentos que ela não compreende nem sabe explicar.
– São oito e meia e o marçano não aparece. Terá havido algum problema? – sussurra.
Maria percorre o corredor que dá acesso às escadas que terminam na porta, para a qual olha com ansiedade. Finalmente, ouve retinir o badalo. É o rapaz da mercearia. Vacila, mas tem de reagir. Não pode perder esta ocasião. Espera que a freira acompanhe o merceeiro até à despensa. Lentamente, inicia a descida até à porta aberta, desafiando a sua coragem. Solta alguns suspiros de agitação. Está a um passo de atravessar a fronteira e correr, correr para bem longe dali, para que nunca mais a encontrem. Para continuar a ser infeliz, talvez, mas não ali.
Maria dá um grito de pavor quando alguém lhe agarra os cabelos com violência. Aterrorizada, vê uma das freiras, que a arrasta para dentro.
– Sua espertalhona. Com que então queria fugir, a fidalga, a princesa do Orfanato queria ir passear, talvez ver as montras e fazer umas comprinhas para o enxoval!!! Malandra, vais já para o quarto dos castigos. Ficas lá um mês a gozar as regalias exclusivas só concedidas a fidalgas e princesas. Não vai faltar nada a sua majestade!… Vai à minha frente imediatamente, sua imbecil, sua sem-vergonha! Parvalhona, armada em esperta!
Maria olha para o cimo das escadas e vê Laurinda com um semblante comprometido.
Não resistindo ao sentimento de revolta, grita para Laurinda:
– Traidora! Traidora!
José Eduardo Taveira
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