A águia descrevia círculos, uns abaixo e outro acima, largos, espraiados no silêncio das asas paradas, planando com a cabeça virada para baixo, um piar de excitação ou de paz, talvez de guerra, quem o poderá dizer, e Alberto desligou o motor da moto e ficou debruçado a ver. A águia continuou a piar, a sua fala de vida, que só as coisas da natureza percebem. Depois picou impulsionando o corpo com um bater de asas frenético, e em dois segundos entrou pelas águas do rio com as asas cingidas ao corpo, como meteoro mandado do céu. E quando voltou trazia no bico um peixe grande a debater-se. A águia subiu como flecha de guerreiro celta trazido dos tempos, passou muito para lá do pico da cabana da velha, largou o peixe sobre um penhasco e mergulhou para o voltar a trazer preso no bico. Depois foi, muito acima, e perdeu-se na distância do céu, até que a vista humana a deixou de ver.
As águias são diferentes de nós, os humanos, não pensam com as mesmas subtilezas e linhas de padrão que nós utilizamos, e isto vocês já sabiam; o que talvez não saibam é que as águias ouvem música, lá no cimo, enquanto dançam o eterno baile da vida, em busca de comer para sobreviver, metidas nas brisas do vento, estampadas no céu, rasando as copas das árvores mais altas ou deixando muito abaixo de si as escarpas mais elevadas das montanhas. As águias escutam no silêncio da natureza os mil violinos do céu, escritos pelo melhor compositor, tendo por cenário de fundo a turbulência das águas dos rios, quais tambores, e a partitura com toda a sua carga orquestral vem de cima, do universo, e também de baixo, e dos lados, pois há universo por baixo e por cima, que somos nós senão partículas de universo, talvez misturadas de maneira diferente, estranha, como se fossemos uma espécie de consciência das coisas eternas que giram na dança da vida, expandindo-se em espiral sem limites intemporais, guardando os segredos da vida, que são simples como tudo o que nos chega do universo, que afinal também somos nós. É um raciocínio estranho, pensar que temos no nosso corpo parte do todo que desde o princípio fez os mundos…
Alberto, – quando atingiu a parte de trás da cabana onde morava a velha, (chamada por uns de bruxa e por outros de santa) – encostou a moto ao tronco do castanheiro que fazia sombra ao alpendre da mulher, e que girava em torno de toda a cabana, de seguida deu a volta, e achou-se no terreiro onde a velha estava sentada na cadeira de verga de pontas soltas e saídas, a olhar com os olhos fechados as memórias vividas e revividas pelos anos, e a velha, (espevitada pela esperteza dos anos) deitando-lhe em cima os olhos negros agudos e expressivos, disse-lhe numa voz de sílabas arrastadas por fôlegos curtos, pouco sonora pela falta de dentes:
– Demoraste muito a cá chegar! A Gabriela esteve a fazer-te o juízo em sarrabulho, pela certa.
– Como sabia a tia Apolinária que eu vinha por cá? Agora adivinha as coisas?
– Sempre adivinhei aquilo que os meus afilhados pensam. É um dom que me vem de os trazer à vida, de os querer e de lhes dar as bênçãos da felicidade. Mas diz-me então ao que vens, subis-te tanto que te vejo vermelho, com essa idade. Eu quando era moça pulava serros mais altos e não me cansava, podes crer. Mas diz… diz…
Alberto humedeceu os lábios secos do vento e da altura, viu a figura de sempre vestida dos mesmos trapos de cor perdida, a face com as marcas das bexigas que diziam que tinham sido das doidas, as mãos rendadas de rugas e um nariz curvo, e pensou que idade teria a velha Apolinária, e quantos moços e moças teria trazido ao mundo com as suas mãos de fada, e logo pensando na sede disse-lhe, Um púcaro de água fresca depois desta subida vinha a calhar!
– Serve-te. Sabes onde está a talha e o púcaro está pendurado por cima, como sempre está!
Alberto entrou na cabana, uma enxerga, uma mesa milagreira pelo equilíbrio dúbio, por ter dois pés partidos, o forno de lenha, a talha da água, a escudela de cortiça posta na prateleira, e o púcaro de alumínio pendurado num prego por cima da talha. Tudo na mesma, e parecia que estava assim desde há séculos. Saciou a sede, passou o púcaro por água que depois espalhou pelo pavimento ensaibrado, e foi quando reparou nas bichas enroladas sobre a esteira. Agora são duas, – pensou, – saiu para fora sempre a olhar para trás, com um arrepio a passar-lhe pela espinha.
– Para que quer vossemecê duas bichas daquelas? Não me diga que dorme com elas?
– E porque não?
– Não tem medo?
– Tenho, mas não é das minhas cobrazinhas, é mais de certas pessoas; vamos lá a saber mas é o que tu queres e deixa as pobrezinhas das minhas amigas cobras em paz. Se não fossem elas já as ratazanas e determinadas pessoas me tinham comido viva!
– Porque não tem antes gatos?
– Menino, se tu visses as ratas sábias que se passeiam por aí à noite e que são maiores do que os gatos, e depois de comerem os gatos vinham-se a mim, cruzes credo, santa Mãe de Deus, ser uma mulher alimento de ratas imundas!
– Mas olhe vossemecê que as cobras têm peçonha nos dentes, senhora!
– Mas têm menos do que certas pessoas que andam para aí, pela vida fora a fazerem mal aos outros! Mas, vá, diz então, que eu tenho mais que fazer do que te dar trela!
– Que é que você tem que fazer, criatura de Deus?
– Saiba o menino que eu fico aqui sentada ao forno da tarde para falar com o meu homem, e falamos de tudo, da vossa vida, do cio das vacas, de como estão este ano bonitas as árvores, por causa da chuva que tem havido, e ele, sabes? Chega-te aqui, isso, que estas coisas não se podem dizer muito alto, por mor de os outros não ouvirem!
Alberto acercou-se de orelha empinada a caminho da boca sem dentes da velha, e ela disse-lhe em sussurro de mistura com golfadas de ar e algum cuspo, Ele conta-me coisas do outro lado, ai se Deus descobre que tem lá um coscuvilheiro assim! Minha santa Maria, que aflição do castigo que o pobrezinho ia a sofrer! Nem pensar em dizer estas coisas muito alto, digo-to a ti mas lembra-te que é um segredo, assim como o da criação do mundo, que não é bom mas é a única coisa que conhecemos! E não fales disto a ninguém, porque o senhor quando é preciso, tem tanto de bom como de mau! Cruzes canhoto! – E a velha persignou-se com os dedos da mão direita, primeiro na testa, depois sobre os lábios, e finalmente abrangendo todo o tórax.
– A senhora antes não era tão beata! – Exclamou Alberto retirando pronto o ouvido de tão perto; é que, para além do cuspo, também o cheiro dos dentes da velha era insuportável.
– Não é esse Deus que os padres inventaram, rapaz, é o outro!
– Outro, que outro?
– O Deus da Natureza, criatura descrente!
– Bem, ontem a senhora viu quem atirou a pedra à cara da turista?
-Vi!
– Pode-me dizer quem foi?
– Sim, posso!
– E quem foi?
– Ninguém, foi a pedra que quis saltar. Sabes, não foi com a cara dela por alguma razão. – Chega-te cá ao pé outra vez, Alberto – E agarrou-o pela manga do blusão, a puxá-lo para si. Tenham cuidado, a terra está farta! E são também os ossos, sabes.
– Ossos, quais ossos?
– O dos antigos, os que fizeram a fala, os que pariram os bisavôs dos nossos bisavôs…
A velha que falava com o marido espírito olhando em frente sentada na cadeira de palha rebentada de anos, a olhar o fim da terra no cimo da montanha, calou-se e nada mais disse. Alberto ligou o motor da moto depois de lhe ter dado um beijo na testa, e começou a descer a serra, de vagar, pensativo.
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