QUEM É O CRIMINOSO? (UM CONTO INSÓLITO SOBRE O FANTÁSTICO)
(…) O que saiu daquelas bocas foi um absurdo e um espanto de embasbacar, e por mais que o chefe da polícia, mais o gerente que assistia ao inquérito, procurassem controlar a expressão, os olhos luziam de espanto perante as dúvidas suscitadas quanto ao estapafúrdio dos relatos. Estariam as pessoas a serem vítimas de uma alucinação colectiva? Consta-se que essas situações sucedem, que são coisas que transcendem o nosso bom senso, embora felizmente tão esparsas no tempo que a memória dos homens rapidamente as esquece, – ou então porque o irrealismo das situações põe em causa os nossos mais vulgares hábitos, – é assim a modos como parecer a alguém que viu um bicho tão estranho que o bom senso rejeita tal impossível visão. Pois diziam todas as senhoras, calcule-se, que, acordadas e bem despertas, saídas a tomar o fresco da noite nas amplas varandas dos quartos, molestadas por sentirem um estranho calor, foram acometidas por plantas vindas do exterior, trazidas pelo vento da noite, e com tanta persistência e ardor foram tocadas, que a todas lhes pareceu, – salvo o devido recato, que lhes impunha comedimento na descrição dos factos, – dedos de folhas masculinas a saciarem-se-lhes pelos seios, ou colhendo impressões sobre a dureza das nádegas, e outras sentiram-se tocadas nos lábios como se de beijos lascivos dados por plantas carnudas se tratasse. Apesar da presença do gerente do hotel, pessoa de bons créditos na vila, homem de recatos e de ideias sãs, bom cristão e excelente marido, pelo menos seria o que se constava naquele pequeno meio rural do interior, o senhor chefe da polícia local, amedrontado quanto aos autos de notícia que a partir de tais relatos tinha de elaborar, solicitou a presença de outro ouvinte dos factos, e a escolha recaiu no hóspede que tomara a iniciativa de comandar as primeiras diligências. Pois, de cautelas e rigor se fazem os grandes inquéritos policiais; e aquele era sem sombra de dúvida menor ou maior, um grande mistério que suscitava um grande inquérito. Mas como pôr, – preto no branco, – que a dada altura uma senhora mais desligada dos recatos, da linguagem comedida e dos desconfortos de vitima, dizer que lhe deram um tremendo de um beliscão na nádega esquerda, exactamente onde tinha um sinalzito de nascença, e uns lábios quentes de folhas de azinheira se esmagaram contra os seus lábios, – que lá teria ficado, na boca das folhas, a marca rubra do seu batom, – e que uma voz feita de vento lhe segredara ofertas de amor, pendurada no ramo mais alto da mais alta árvore da montanha, em noite de quarto minguante, em posições de volúpia indescritíveis? Um chefe de polícia cauteloso tem de resguardar o seu bom nome dos escândalos fáceis e das malícias dos seus superiores. E que relato mais predisposto para suscitar malícias e suspeitas do que um auto de noticia recheado de tamanhas histórias sobre o fantástico; onde estava o nosso chefe com a cabeça quando fez esta descrição aqui, está a ver, nosso comissário? Até leva a crer que o nosso homem acredita nestas coisas, – diria um dos seus superiores, – Olhe que até prova em contrário o suspeito é um potencial autor do crime! Exclamaria outro, enquanto o primeiro, o mais graduado de todos, o homem com puderes para tudo decidir, acrescentava ao que tinha dito, recostado no espaldar anatómico das costas da cadeira, meneando o corpo levemente de um lado para o outro: Mesmo assim. Sem dúvida que o caso é complicado, mas, que diabo, tem que prevalecer objectividade na descrição das ocorrências, ou não temos forma de pegar nos casos. Olhe aqui, nosso comissário adjunto, esta descrição, e passou a ler: A senhora (fixou os olhos no nome da testemunha) hum… senhora Graçola? (que raio de nome, disse entre dentes) disse e assinou no seu depoimento, que: Umas mãos de folhas lhe puxaram a nuca suavemente, inclinando-lhe assim a cabeça para trás, enquanto uns lábios carnudos de folhas molhadas de orvalho lhe davam um longo beijo tipo cinéfilo! Que trapalhada esta!
Estes e outros pensamentos fizeram o chefe da polícia local suspirar de alívio, quando o seu subordinado lhe veio comunicar que o cidadão inglês se colocara ao inteiro dispor das autoridades para colaborar em tudo quanto lhe fosse possível.
– Escute também o senhor, – que tão gentilmente se presta a este encargo de auxiliar a autoridade, – as descrições pormenorizadas feitas pelas senhoras vitimas desta… (e aqui o policial hesitou, quanto ao termo a utilizar), digamos, tentativa de sedução florestal por parte de desconhecidas plantas chegadas, trazidas, na brisa da noite, (e o policial nesta parte persignou-se com a mão direita, enquanto dizia baixinho, entre dentes quase cerrados, Valha-nos o Santíssimo), o pobre homem, habituado às lides dos crimes sem história, aqui uma facada dada na mulher, ou na namorada, por razões de ciúmes, coitados dos homens, acontece aos melhores, esta maldita coisa dos ciúmes, e pobres das mulheres que levam as facadas, apenas porque não disseram a tempo que o tipo era um primo afastado, chegado da América, que por estar cansado, em certos casos se deitou ali ao lado, – em cada mil casos existirá um em que a esposa tinha um namoro clandestino a que poderia chamar de “primo da América,” as restantes novecentas e noventa e nove ignoram os motivos da agressão, – ou então as brigas em tascas de aldeias e povoados, generosamente punidas com tabefes, dois encontrões e um pontapé no rabo, uma viagem ao posto, no banco de trás ao lado do agente canino, de barba rija que se lhe via pelo corpo todo, cavalheiro rosnante e mal-encarado, sempre sem paciência para nada, ao lado do qual toda a gente tinha de estar rigorosamente quieta, imóvel como se de estátua de pedra fosse, e ali e agora, naquele precioso momento em que lhe surgia um intrincado crime capaz de o projectar aos níveis mais altos da investigação, logo o criminoso era vegetal! Como interrogar um audaz facínora feito de tenras folhas e de verde vestido? O senhor comandante do posto alisou a barbicha rala caída abaixo do queixo, com mãos nervosas e dedos trémulos, humildemente encarou de frente o senhor estrangeiro na sua frente, um homem na casa dos quarenta e poucos, rosto enérgico, jovial, franco e decidido, e foi como se lhe pedisse compreensão; e o outro, num português de sílabas arrastadas noutra prenuncia, valeu-lhe num conforto de palavras aparentemente desligadas, que noutra altura seriam impróprias e hilariantes, Eu dou…-lhe… conforto… e amor! Não é assim que se diz? O gerente agradeceu no lugar do senhor chefe, e a recolha das queixas continuou. (…)
José Solá
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