“JUNTOS PARA SEMPRE” (1)

 

Maria nasceu sozinha, como costuma dizer. Nunca conheceu mãe nem pai. Ninguém.

Nasceu na soleira da porta do Orfanato “Ninho de Amor”, gerido por freiras, situado numa pequena cidade do interior, no princípio da década de 30. Embrulhada num cobertor velho e sujo, conforme lhe disseram anos depois, Maria estava faminta e em estado de hipotermia. Levaram-na para dentro e juntaram-na às mais de trinta raparigas que tiveram sorte idêntica.

O Orfanato tem aspecto de casarão abandonado. O jardim que o circunda não tem flores, nem relva. Arbustos raquíticos, matagal e lixo arrastado pelo vento evidenciam a displicência das freiras em proporcionar uma paisagem agradável a quem lá vive. As paredes exteriores sem pintura e com imensas brechas, deixam ver o seu interior de caliça que vai escorrendo com a força da chuva nos invernos rigorosos. As janelas de caixilhos de madeira apodrecidos sustentam com dificuldade as vidraças protegidas por gradeamentos enferrujados, que previnem a evasão de alguma prisioneira. A porta de entrada, decrépita e misteriosa, representa para as raparigas a fronteira entre a liberdade e a reclusão. Por cima, destaca-se uma placa de madeira, na qual se lê em letras brancas: “Ninho de Amor”. Uma evidência de humor sórdido…

O interior apresenta uma decadente, descuidada e promíscua ambiência. As camaratas ocupadas pelas raparigas são escuras e respira-se um ar impregnado de lixívia. As camas de ferro, desconchavadas, com colchões de palha, velhos, rotos e bafientos parecem desfazer-se quando as meninas se deitam. O chão de cimento escuro e húmido, tal como as paredes, transformam espaços de repouso em celas prisionais. O refeitório, junto à cozinha, tem duas mesas compridas feitas com tábuas de recorte irregular assentes sobre pipas velhas, que exalam um pútrido cheiro avinagrado. Sob a mesa estão os bancos, quase todos estragados, que servem de assento periclitante, causando, com frequência, quedas durante as refeições. A loiça de alumínio, negra e amolgada pelos anos de uso, provoca náuseas que são reprimidas à custa da falta de alternativas. A dieta alimentar desequilibrada e insípida, carente de minerais e vitaminas indispensáveis ao organismo, provocava problemas de desenvolvimento físico e intelectual nas crianças.

Ao fundo do corredor existe uma capela. No topo, um pequeno altar coberto com uma toalha branca bordada nas extremidades, sobre o qual estão dois círios, o tabernáculo e uma cruz de madeira com Jesus Cristo crucificado. Dois genuflexórios, um confessionário e uma pia de água benta feita em cerâmica completam o mobiliário do espaço exclusivamente dedicado à oração. Aqui, além dos frequentes retiros de reflexão das mulheres consagradas a Deus, todos os domingos é celebrada a missa matinal por um padre de aspecto seboso, admirado pelas freiras que o consideram uma bênção de Deus, talvez pelos gracejos brejeiros que lhes dirige.

O sino de bronze toca a todas as horas – para levantar, para comer, para orar, para deitar, para reunir, para dispersar. Este regime inflexível, aliado à insensibilidade das freiras e à inexistência de relações humanas, fomentam um clima depressivo que marcará o futuro de todas as jovens.

A ala reservada ao grupo das cinco freiras exibe uma decoração simples mas confortável, privilegiando o seu bem-estar. As paredes pintadas de branco, repletas de quadros com imagens sagradas, são diariamente veneradas pelas freiras num ritual de obscena trivialidade.

Dois mundos separados por uma porta que nunca se abre sem a chave que cada freira é possuidora.

(Continua)

José Eduardo Taveira

 

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