Mertre marceneiro

Das minhas andanças pela vida, ainda rapazola, passei pela oficina de mestre marceneiro, ou mestre Luís para os aprendizes, e para os amigos.
Mestre Luís tinha uma pequena oficina numa garagem de rua, dessas que têm apenas uma entrada e saída, sendo necessário passar atravessando o empedrado do passeio, e, se de carros fosse o movimento, e não de pessoas, tinham de vencer o abaulado do lancil de pedra, com cuidado na manobra, por ser rua com certo movimento. Para os amigos, sempre à espera da sua presença na mesa do café, onde se encontravam em tertúlia, se a isso ele se mostrasse disponível, o silêncio impunha-se na mesa, depois de espreitar os ocupantes das mesas ao redor, e se os rostos não fossem de preocupar, a rapaziada nova assistia, com pasmo de aluno, ao desfiar de uma soberba aula sobre temas de política e de comportamento social, e de respeito entre os homens, dada graciosamente, e com gosto de narrador instruído sobre todos os temas sociais possíveis de descortinar, no vasto reportório de tais assuntos criado pelo imaginário humano.
Em outras alturas de noites quentes, logo que bebericado o café, acompanhado de conversa frívola para consumir tempo, o grupo punha-se a andar, avenida para cima, avenida para baixo, ou sentados no banco curvo sob o mural de azulejos da autoria de mestre Cargaleiro, no velho jardim que ainda hoje lá está, ele que pode confirmar as andanças do grupo pela noite adentro, noite que mesmo amodorrada pelas horas tardias, dava a entender que não perdia pitada da conversa, pela forma como as horas badalavam de muito em muito tempo, batidas pelo badalo do campanário da igreja.
O grupo compunha-se por gente aprendiz, ou já mestre em alguma arte; Tínhamos um pintor, um ceramista que nem sempre estava presente, um cantor lírico, um jornalista e um escritor, e depois uns tantos rapazes interessados em tais assuntos, também eles mestres de variados ofícios. Não havia raparigas, nem uma sequer, para dar gosto aos olhos e algum tempero à alma. Em tal época as raparigas não eram flores da noite. Eu, nessa altura, era o mais jovem do grupo, catorze anos feitos pelos idos do mês de Julho, e interessado em tudo o que fosse conhecimento.
Hoje já se pode dizer do que falava mestre Luís, porque, mesmo que alguém se incomode, não vem daí qualquer mal ao mundo. As pessoas de hoje já tem o direito à sua opinião, ao seu gosto, é uma questão que vem da sensibilidade de cada um.
Mestre Luís falava, afinal e simplesmente, de tudo o que aprendera na universidade do Tarrafal, nessa ilha do Sal perdida algures fronteira à costa de África, por entre as névoas do oceano, pedaço de chão deserto gasto pelas brumas do tempo perdido, onde os portugueses de ontem estabeleceram os seus entrepostos da escravatura. E já pela madrugada em que os vivos despertam, o grupo, moído de orvalho por todo o corpo, rabos gelados do banco de pedra, alguns protegidos pelos casacos dobrados, mas com as almas alimentadas pela comida do espírito, começava a dispersar. Parvamente uns diziam boas noites, outros até à manhã, e esta forma de adeus ainda era a mais perversa, dado que o corpo carece de outro tipo de alimento, e esse só pelo trabalho do dia-a-dia o pudemos conseguir. Eu ia a casa descansar uma mão mal cheia de horas, a pensar em tudo quanto havia sido dito noite adentro, e logo me punha a caminho da minúscula oficina, de modestos concertos de móveis velhos, a bem dizer especializada na grudagem de cadeiras velhas e desconjuntadas, em rejuvenescer antigas mesinhas de cabeceira, lixar as superfícies, betumar, passar biochene com a boneca de trapo, em círculos, para evitar manchas, paciência de Jó a comandar os movimentos mecânicos e sempre iguais, que eram pedidos aos braços, e sempre a peça que fora comprada pelo falecido avô de alguém, ia a servir para o neto apetrechar o quarto em casa dos pais, para o casório, com uma peça de estalo, quer pela antiguidade, quer pelo brilho de cativar vistas.
– Ficou bonita, não ficou? – Diria a filha ou o rapazote filho para os pais.
– Sim, que ainda mete vista, e, olha, não foi nada caro. O mestre marceneiro parece que trabalha melhor sempre que trabalha para os pobres!
– Coitado, assim nunca vai passar da cepa torta!
Nunca consegui perceber de que material eram feitos os anarquistas, se de oiro, ou de metal quimeras, se de vidros de quinquilharias de montra de loja de bairro, se de puras gemas de diamante, e se na parte que toca à organização e participação das pessoas no governo das terras deste mundo, na formação escolar agrária para os trabalhadores agrícolas, na aprendizagem dos ofícios para os operários, nas escolas de saberes gerais que permitam aos homens o mínimo de cultura que lhes permita saber pensar, nas organizações de classe que pugnam pelos interesses dos diversos grupos, nas sociedades de recreio e cultura das vilas e das aldeias, nas universidades onde as classes sociais sejam uma mera consequência da vida, mas a inteligência e as pessoas em si mesmas, formem no seu conjunto o bem mais precioso do mundo, a manter e preservar por qualquer preço, e como tudo isto pode funcionar alguma vez sem outras directrizes que não, apenas e somente, o respeito mutuo entre pessoas, através de decisões tomadas em plenários públicos. Andava eu a magicar nestas e noutras coisas, quando, um belo dia de afanoso trabalho de cadeiras, mesinhas de cabeceira e um aparador velho, de tampo de mármore rachado em dois sítios, entrado dois dias antes e apresentado como o princípio dos grandes trabalhos chegados, enfim, a salvar o futuro, um dia antes da ponte com o feriado da Nossa Senhora da Assunção, o mestre e amigo Luís, lá do canto onde funcionava o seu escritório, dedo espetado no ar, a chamar a minha atenção, dizendo Camarada e amigo aprendiz, vamos a ter uma conversa séria sobre as verdades sociais da vida. E lá fui eu, três metros de garagem mais adiante, a encostar-me ao velho banco de carpinteiro de madeiras gretadas por muito já terem visto e escutado.
Mestre Luís estava do outro lado do banco, encavalitado sobre o único toro de madeira mais ou menos nobre que existia na oficina, se me lembro bem, parte de um tronco de mogno seria, que depois de morto ficou assim, daquele tamanho, um metro e quarenta, um metro e cinquenta, não mais, na agonia da espera de ser solicitado para serventia útil. E diz-me o mestre, no seu ar confidente e também de aconselhador das coisas sérias da vida:
-Camarada aprendiz, no fundo da tua consciência acredita no Deus que os padres apregoam?
Perplexo com a dimensão e o tamanho da pergunta, feita no credo de um fôlego só, pensei, pensei, e não achando bem o que havia de dizer, fiz exactamente o mesmo que faria um aprendiz de marceneiro, que fosse em simultâneo um modesto discípulo dos sonhos libertários das ideias de esquerda.
– Acredito precisamente em tudo o que vejo, que sinto, e em que posso tocar!
Depois fiquei espantado com o meu improviso. Ele olhava-me sério, mas notava-se o apreço que tinha pelo seu trabalho de formador de consciências.
– E não é possível ver esse Deus milagroso de que a igreja fala?
– Não, não me parece!
– Então, em consciência, não concordas com o feriado depois de amanhã, e não apenas por uma questão de consciência, mas também pela impossibilidade de alguém ascender a esse espaço lá de cima a que se chama céu, voando, ou simplesmente subindo?
– Não!
– Concluímos então de que nos é impossível, por imperativos de consciência, pela honestidade a que as nossas ideias obrigam, a respeitar o feriado, mas antes a contrariá-lo, vindo trabalhar!
– Essa conclusão é evidente! – Disse, ufano do meu discernimento.
– Mas, sabes, é um feriado obrigatório…
– Sei, mestre!
– Então vamos combinar uma coisa. Vamos parar com o que estamos a fazer, e vamos a ver as tarefas possíveis de executar sem ruído. Quantas cadeiras temos por aí para colar, sabes?
– Só contando!
– Então conta lá num instante!
Fui numa fugida ao outro extremo da garagem, junto à parede da casa de banho, minúscula e pouco asseada, por razões óbvias de economia forçada, tínhamos uma retrete turca, um autoclismo de parede, lá em cima, com uma corrente e um cabo a que se tinha de dar um pequeno pulo para o agarrar, uma janela gradeada que dava para o quintal da vizinha do rés-do-chão, um lavatório de parede de pequeno tamanho, equipado com uma torneira de rosca, que, quando achava que era dia de abrir, havia sempre a incógnita se estaria depois disposta para se fechar.
Lá estavam as cadeiras, na maioria estufadas, empilhadas umas sobre as outras, debaixo da única janela que iluminava a pequena oficina, e quando a nesga de Sol lhes dava, havia uma confusão de sombras misturadas com rasgos de luz dourada a esguichar por entre pernas de madeira e tampos, travessas de travamento e um ou outro pano de pó de mistura. Contei as cadeiras. Quinze!
– Nós conseguimos colar, sem fazer barulho, aí quantas, na tua opinião?
– Umas oito!
– Nem penses! Com a porta fechada, pouca luz, e os tipos a rondar lá fora? Se colarmos quatro é muito! Temos de usar os maços de borracha embrulhados em panos, não te esqueças de, ainda hoje, reunir panos e deixa-los à mão, assim como os novelos de cordel e pedaços de madeira para dar os apertos nos fios!
– O mestre pensa que vamos ser espiados?
– É evidente que sim, pelos santos da PIDE do costume. Temos de estar atentos e de quando em vez espreitar por uma nesga de porta para os localizar!
– Há aí um buraco!
– Onde?
– Na folha da esquerda, foi um nó pequeno que saltou, eu esqueci-me de dizer. Olhe, mestre, ali mais para cima!
– Tens razão! Caramba, vem mesmo a calhar! E olha que a altura não é má de todo, temos, é de nos agachar um bocado, vou ficar com dores nas costas. Fazemos assim, revezamo-nos, tu espreitas um bocado e eu espreito outro. É bom que os tipos estejam sempre sobre observação, porque os maganos são matreiros, sabem-na toda!
– O pior é se eles conseguem perceber que os estamos a espreitar!
– Rapaz, tens ideias certas! Vamos experimentar agora; fechamos esta folha da porta, eu espreito e tu passeias um bocado no passeio, assim como quem anda a apanhar um pouco de ar, e vês se é possível notar-se lá de fora!
Fez-se tal e qual como foi dito. Fechou-se a porta com as duas folhas, para evitar que a claridade do dia interferir-se com a experiência, o mestre ficou na posição de estar à coca, de pernas flectidas para conseguir uma posição de observação perfeita, e eu pus-me a calcorrear o passeio para trás e para diante, fixando a porta, com pena de, na altura, não ter olhos de águia pesqueira, porque aí, sim, a conclusão seria perfeita e indiscutível; passei pela porta uma, duas, três, quatro vezes, talvez cinco, quase roçando a folha da ultima vez, olhos fixos no sítio onde se sabia que estava o buraco do nó, depois, por um lado satisfeito pelos resultados da observação, por outro, porque dei com os olhares de perplexidade da vizinha do rés-do-chão ao lado, a fitar-me enquanto sacudia um tapete na janela, achei chegada a altura de dar a boa nova ao mestre. Bati e entrei.
– Então?
– Não se vê mesmo nada!
– Garantes?
– Claro que sim!
– Pois… é que, sabes, se calhar não viste nada porque os olhos não estavam lá!
– Então?
– É que não aguentei a posição, por ser demasiado incómoda!
– E agora?
Mestre Luís pensou um segundo, e logo decidiu.
– Ficas tu a espreitar e eu vou lá para fora!
– Como achar melhor. Mas tenha cuidado com a vizinha do lado, que está a sacudir o tapete na janela e julgo que ficou intrigada com as minhas andanças, se agora o vê a si a fazer o mesmo não sei o que pensará…
Mestre Luís abriu a porta e espreitou para o lado da janela, a modos de quem não quer a coisa, e logo disse para dentro, com ar triunfal, A senhora já foi para dentro!
Andou lá por fora bem uns cinco minutos, e depois retornou, a dizer, Tens razão, não se vê nadinha…

O dia feriado chegou, com foguetório no adro da igreja, por sinal um largo próximo, pois a igreja fica numa rua estreita lateral à câmara municipal, e assim o largo é o espaço de apoio às festividades religiosas.
Nós chegamos cedo, como se tinha combinado, um de cada vez, e deslizamos para dentro da oficina num ápice.
Sem a porta aberta a oficina mais parecia um túmulo, de tão tristonha que ficava, uma luz mortiça no alto, presa no fio eléctrico, uma nesga de claridade vinda da janela, vencida pela luz eléctrica, um cheiro desagradável a chegar constante da minúscula casa de banho. Mas como a vida do aprendiz e do discípulo carece de sacrifícios para se chegar a mestre, vamos com alegria a começar o dia de trabalho; de manhã assim cedo não é preciso estar de atalaia porque os pides são preguiçosos, levantam-se tarde, se fossem pessoas úteis à sociedade não tinham ido para a PIDE! – Disse o mestre. – Vamos aproveitar para desmanchar o maior número de cadeiras, e da parte da tarde é que as colamos.
Pusemos mãos à obra, cada qual em seu canto do banco de trabalho, martela com cuidado daqui, dali, para soltar as travessas, limpa-se os cunhos e as fêmeas onde eles encastram, coloca-se por ordem, peça a peça, no chão, sobre jornais que ali foram colocados para terem exactamente esse préstimo. Com a aplicação ao trabalho as coisas começaram a correr melhor; ao cheiro e à luz mortiça, a um adaptamos o olfacto, e ao outro a vista, e aí por roda das onze da manhã já estávamos em perfeita sintonia com semelhantes dificuldades.
Foi por volta dessa hora que espreitámos pela primeira vez a rua. Aos feriados passavam menos carros e a rua enchia-se de passeantes, nariz no ar, a apreciar as vistas das janelas, ou então fixos na meia dúzia das montras, em particular na da loja dos vestidos, as moças a ver, um pouco curvadas, os paspalhos a espreitar por de trás delas, e quase em frente, na esquina direita da pequena rua que ficava perpendicular à nossa, na taberna dos alentejanos, já as vozes dos homens lançavam no ar as soberbas melodias dos ranchos das planícies. Isso era o melhor de tudo. As vozes alentejanas, timbradas e fortes, valiam bem um dia feriado passado a trabalhar.
– Mau, começa a festa!
– Então? – Inquiriu o mestre.
– Estão dois polícias parados no passeio em frente a olhar a porta, e um paisano, polícia política, pela certa, passeia-se mesmo em frente da porta.
– Chegou a minha vez de espreitar. Havia de facto uma parelha de polícias no passeio da frente, mas fiquei com a impressão de que olhavam para todo o sítio menos para a porta. E também, é facto, havia um tipo esquisito, chapéu de abas enterrado na cabeça, cinzento com a faixa preta, fato cinzento-escuro com riscas brancas, mãos enterradas nos bolsos das calças, a andarilhar o passeio de trás para a frente, da esquerda para a direita, e de novo de trás para a frente, mas desta vez da direita para a esquerda. E aí sim, eu senti um certo arrepio a nascer ao fundo das costas, e a subir pela espinha, a refrescar e a fazer tremer o corpo todo. Olhei o mestre. E agora? Não viemos trabalhar? Então é isso mesmo que vamos continuar a fazer.
Primeira cadeira colocada peça por peça sobre o tampo do banco de trabalho. Ultima limpeza nos encaixes, machos e fêmeas. Eu comecei a passar cola branca nas peças e o mestre a encaixa-las, batendo com o maço de borracha envolto em panos, para que a entrada do macho fosse completa e perfeita. Mas, não é que a batida do maço, no espaço fechado da garagem, fazia eco? Isto houve-se lá fora! Foi a primeira reacção do mestre. Bata outra vez, pedi. Zás, pum, pum, pum. Talvez que não se oiça. Disse. Vamos a ver outra vez do homem. Fui à porta e espreitei. Lá continuava o sacana, no mesmo sítio, precisamente em frente da porta, com a mesma expressão que não era nenhuma, uma cara parada e séria, as mãos continuando nos bolsos. Mas, pensei, se tivesse ouvido não continuaria assim, passivo e parecendo desligado do mundo, unicamente concentrado em manter o mesmo ritmo pisando as mesmas pedras.
– Olhe que me parece que o ruído não passa para fora…
– Mas como é possível se faz tanto eco?
– Já pensou que é o estado de apreensão em que estamos que nos faz parecer que este eco é enorme?
– Talvez…
Deixe-me espreitar de novo o tipo! – E voltei a encostar o olho ao buraco. – Não, o homem contínua no seu passeio! Há! Espere. É isso, o homem não é nada policia. Acaba de aparecer uma senhora e lá vão os dois, de braço dado, a caminho do Pancão!
– Não me digas!
– É verdade, ora espreite lá…
– Pois, é verdade, mas olha que os outros dois continuam ali na frente!
As dúvidas e os sobressaltos de mestre Luís continuaram pelo dia fora, e ao fim, por roda das cinco da tarde, olhando a obra do dia, duas escassas e modestas cadeiras solidamente apertadas pelos cordéis, já em adiantada fase de secagem, ambos reconhecíamos que a produtividade tinha abalado para as terras da amargura, a modestíssima contribuição do trabalho do dia que, se fossem todos os dias iguais, não valia a pena sequer esperar pela falência, mais valia fechar já a porta e levar a chave ao senhorio. Desolado, mestre Luís pagou-me vinte e cinco tostões pelo trabalho do dia, à época perto de um terço do salário de um dia, e ambos partimos, cada qual para a sua casa.
Se no plano económico o nosso feito foi considerado por nós, um desastre redundante, no plano politico foi um êxito de primeiríssima água, a jóia da coroa da esquerda, se assim se pode dizer, uma coroa sem rei, como é óbvio, destronada e arquivada nos fundos da arca dos tempos, mas, que diabo, sempre uma coroa.
No resto das noites quentes do verão, foi badalado palmilhando a avenida para baixo e para cima, mas sei que também passou as fronteiras da terra, foi falado por cafés e em tertúlias de cidade grande, talvez que em algumas noites bichanado entre os quatro ou cinco da mesa, cabeças próximas umas das outras. No dia de Nossa Senhora da Assunção, vejam só, feriado sagrado do regime, que coragem e engenho não terão sido preciso, e a preparação, o planeamento, o rigor, a fortíssima convicção dos intervenientes; há quem diga que foram só dois, pois, eu sei que tal é verdade.
Para mim, simples mortal, aprendiz e discípulo, inconsciente em função da idade, um alivio por não ter corrido mal, por o tal sujeito, apesar das aparências, não passar de um pacato e modesto cidadão, apesar do chapéu cinzento com fita larga preta, do fato cinzento às riscas largas brancas, da expressão inexpressiva a ver com extremo cuidado se pisava sempre as mesmas pedras do passeio, um cidadão que sabia disfarçar a impaciência, na prolongada espera por uma esposa que não seria um modelo de consideração pelo esposo, e a sorte, a grande sorte, foi a policia politica já ignorar por completo a irreverência do velho anarquista, diriam que seria da idade, ou que a porrada que apanhou no Tarrafal lhe teria dado cabo do juízo. Como seria possível alguém querer repetir a dose, os calores da fritadeira, os esbirros Mete- Nojo e Porcalhão, escutando conversas e imiscuindo-se na privacidade da gente de bem, sonhadores solidários, de bondade canina, a pugnar por uma sociedade inculta, um povo quietinho, como Teixeira de Pascoais dizia, iletrado e mesquinho, que se deixava manobrar na fome, permitindo ao Estado Novo metodicamente construir o quarto império, vivendo das remessas dos imigrantes.
O quarto império foi construído sem que o ditador investisse um tostão furado; as pessoas fugiam, pagando aos passadores o dinheiro que fazia falta para comprar pão para a boca dos que por cá ficavam, e por terras de França, da Alemanha, ou outras pátrias, humilhavam-se a fazer todo o tipo de trabalhos não qualificados que lhes surgissem.
Mas deixemo-nos de recordar as coisas tristes. O que passou, passado está, digamos lá o que dissermos, e não vale a pena dizer nada, as pessoas não mudaram, as pessoas não mudam nunca, enjeitam os trapos velhos, sem perceberem que são exactamente iguais aos novos, de promessas de políticos está este mundo a transbordar.
Sempre a perseguir a Utopia fomos deixando os meses escoarem-se pelo funil do tempo, na pasmaceira das conversas repetidas, das noites perdidas, e o cansaço aos poucos começou a desbastar a minha convicção acerca das convicções e certezas que, na minha ingénua perspectiva, iriam a resultar num mundo melhor.
Escrevi a minha primeira história sobre uma aventura tipo Júlio Verne e calcorreei Lisboa inteira em busca de um editor que pegasse na história. Recordo o semblante das pessoas que encontrei nas editoras, ao verem um catraio com catorze anos a entrar por ali a dentro, pasta de cartolina debaixo do braço, Sou o autor desta história e gostaria de ter o vosso parecer, quanto à qualidade, e a uma possível publicação. Ao princípio as pessoas não sabiam bem o que lhes tinha caído ali na frente, diziam simplesmente: Não estamos a aceitar trabalhos, mas também me lembro daquele senhor grisalho de cabelos e com rugas marcadas no rosto, que olhando de cima para baixo, a ver bem quem ainda se estava a levantar do chão, e me disse, Filho, és de boa cepa, mas tens ainda de padecer muito na vida, os escritores são feitos pelas experiencias da vida, volta por cá daqui por uns anos. Não voltei, porque passados os anos, percebi o que é possível, e o que é impossível para os pobres fazer na vida. Das poucas coisas que nos é sempre permitido fazer é ficarmos quietos na nossa condição de pobres; pobre trabalha, e por isso não tem muita necessidade de pensar, mas se for teimoso e pisar o risco, se por mera questão de princípio, o devemos de meter na ordem, por outra, devemos ter sempre presente que a sua condição de pobre é segurança que baste para os ricos e os eleitos; é que vozes de burro nunca são altas o suficiente para chegarem ao céu e berrarem aos ouvidos de Deus.

Passados que foram meses, postos para trás das costas, em uma manhã soalheira de Abril, esse mês das águas mil que purifica o ar e enche de primavera a terra, pôs os pés na oficina ao som de uma cantiga, – era o fado do cavador, – que o mestre na sua voz sem ritmo, cantarolava junto à parte do banco a que chamava de escritório.
– Alegria no trabalho? – Inquiri.
– É, estou a adivinhar o feriado!
– Feriado? Qual feriado?
– Então não sabes que amanhã é fim de mês?
– Mas não é feriado, que eu saiba!
– Pois, claro que não é, mas que dia é depois de amanhã? O primeiro de Maio! O dia internacional do trabalhador!
– Não me diga que está com ideias…
– Se não temos capilé nas veias, mas sim o sangue de quem trabalha, é evidente que temos a obrigação de respeitar o nosso dia, não trabalhando!
– Olhe que oficialmente o primeiro de Maio não é feriado consentido em Portugal. Lembre-se que da outra vez tivemos muita sorte, e isso deve-se a pudermos ter a porta fechada porque se tratava de um feriado oficial, o homem que nos meteu medo não era policia, e os dois policias fardados ali de fronte estavam lá por outra questão qualquer, mas depois de amanhã temos de ter a porta aberta e não somos homens invisíveis. Vamos passar o dia aqui parados a olhar um para o outro sem fazer nada? Só se quer fechar a porta e depois arcar com as consequências. Pense que estes estupores trazem-no marcado…
– Sem fazer nada não vai ser, pudemos bem sentarmo-nos cada um em sua cadeira e pôr a leitura em dia!
– Isso é desafiá-los abertamente!
– Não é se não tivermos material…
– Como está a pensar fazer isso?
– É simples. Entre hoje e amanhã eu levo o material que aí temos para casa, com a tua ajuda, que é muito peso só para um homem, já tenho uma requisição de material que não vai chegar a tempo, e assim podemos passar o dia dedicados a leituras e conversas importantes, a não ser que não queiras vir…
– Claro que venho! Eu não sou o problema maior, aliás, nem sequer sou o problema, é em cima de si que essa gente anda!
– Então estamos cá no nosso feriado?
– Por mim, sim!
E o primeiro de Maio apareceu na manhã fresca da Primavera, entre flores abertas nos jardins e almas atrevidas de homens e mulheres foitos e fartos, mas poucos, sempre poucos, a engrossar de raivas as reuniões e os ajuntamentos proibidos. E nós lá estávamos, cada qual refastelado na sua cadeira de braços, firme porque bem colada, próximos de distância e de espírito, a deliciar-nos cada qual com a sua leitura.
Eu levei O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, e o mestre um trabalho de André Malraus, e quando a alma dos homens se satisfaz de alimento, fica confortável, e não repara nas horas que correm. Foi assim que correu uma parte substancial do dia, e nem sequer a exposição pública nos abstraiu da leitura.
Dei por mim às tantas com um certo incómodo. Ergui os olhos da leitura e fiquei estarrecido. No passeio do outro lado, sozinho, parado, sem conseguir conter o riso, estava o homem do chapéu cinzento com fita de cetim preta, fato cinzento às riscas largas brancas, mãos enterradas nos bolsos das calças, e ambos nos fitamos nos olhos, de um lado os meus, verdes cinzentos-claros, mas tristes, do outro não sei, não lhes percebi a cor, mas que eram brilhantes e grandes, rasgados como os dos falcões, lá isso eram. Olhamos fixos um para o outro, não sei por quanto tempo, e depois chegou a mulher, com um fato saia casaco azul-escuro e uma blusa branca rematando no inicio do pescoço com um laço, deu-lhe o braço, e ambos arrancaram a passo estugado no sentido do Pancão.
Com o passar do tempo segui a minha vida, meti-me por outros rumos e outros voos. Anos mais tarde soube que o mestre tinha falecido, apesar do seu vigor aparente. Terá sido em resultado da porrada dos PIDES, mas também da frustração de ter percebido, que uma boa parte do povo ignora os sacrifícios e os esforços, de um grupo escasso de pessoas que pensa nele. Hoje, na cidade, fizeram a justiça de ter uma rua com o seu nome…

Sobre jsola02

quando me disseram que tinha de escrever uma apresentação, logo falar sobre mim, a coisa ficou feia. Falar sobre mim para dizer o quê? Que gosto de escrever, (dá-me paz, fico mais gente), que escrever é como respirar, comer ou dormir, é sinal que estou vivo e desperto? Mas a quem pode interessar saber coisas sobre um ilustre desconhecido? Qual é o interesse de conhecer uma vida igual a tantas outras, de um individuo, filho de uma família paupérrima, que nasceu para escrever, que aos catorze anos procurou um editor, que depois, muito mais tarde, publicou contos nos jornais diários da capital, entrevistas e pequenos artigos, que passou por todo o tipo de trabalho, como operário, como chefe de departamento técnico, e que, reformado, para continuar útil e activo, aos setenta anos recomeçou a escrever como se exercesse uma nova profissão. Parece-me que é pouco relevante. Mas, como escrever é exercer uma profissão tão útil como qualquer outra, desde que seja exercida com a honestidade de se dizer aquilo que se pensa, (penso que não há trabalhos superiores ou trabalhos inferiores, todos contribuem para o progresso e o bem estar do mundo), vou aceitar o desafio de me expor. Ficarei feliz se conseguir contribuir para que as pessoas pensem mais; ficarei feliz se me disserem o que pensam do que escrevo… José Solá
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