Maria percebe que o ambiente de aparente paz está a ficar minado pelos acontecimentos recentes. Resolve escrever à enfermeira Celeste a contar esta história que tanto a humilhara. Tem a certeza que Fernanda pretendeu vingar-se por ter perdido o lugar da melhor aluna dos bordados. A carta não foi entregue porque a Madre Superiora não autorizou.
– Tu infringiste novamente as regras da Casa de Acolhimento, denunciando para fora o que se passa cá dentro. Que tens a dizer sobre esta desleal atitude?
– Mas, Madre Superiora, a Celeste é minha amiga e portanto eu ia contar-lhe o que se passou, mas sem me queixar de ninguém e eu nem tive culpa de nada.
A Madre Superiora fita-a nos olhos, rasgando a carta que Maria escrevera e avisa-a:
– Esta é a última carta que escreveste nesta Casa. Nunca mais escreverás uma linha até saíres daqui. Não admito traições. Esta Casa dá-te acolhimento, comida e educação. Deus não aceita ingratidões. E aqui ninguém tem amigos lá fora, estás a perceber, sua cara de manhosa? Serei implacável a cumprir as ordens divinas. Agora desaparece da minha vista.
Maria, ao ouvir este sermão, sentiu uma vontade enorme de lhe responder:
– Estou farta de si, que não respeita os que mais precisam. Deus tem vergonha de si e do seu bando, sua caixa de óculos, sempre de terço nas mãos, parece uma santinha, mas espalha o medo pelos mais fracos, que somos nós, sua hipócrita! Que mulher feia e bexigosa!
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Estas freiras são soberanas porque os seus súbditos não têm alternativa de escolha. São monarcas odiadas que ficarão eternamente como um marco negro de ignorância e vergonha na vida daqueles que tiveram o infortúnio de precisar de sobreviver sob as suas ordens. Alguma desta gente que vegeta pelos conventos, orfanatos, casas de acolhimento, seminários, igrejas, lares de idosos e outras instituições, tem frustrações por resolver, transferindo cobardemente a violência gratuita da sua autoridade espúria, para sobre crianças, jovens e velhos incapazes de reagir, pela sua pobreza e fragilidade social. Gente amorfa, caquéctica, que vive fascinada pela exibição do poder ridículo, que diz ter-lhes sido concedido por Deus. Triste gente que Ele castigará, enviando-a para as labaredas de um inferno que dizem existir.
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Maria está no Oratório. Precisa de um momento de isolamento. Durante aqueles minutos compraz-se de um silêncio que não está corrompido pelo vozear sibilino que marca o estilo de comunicação das freiras com as jovens. Sente a entrada de alguém e logo percebe que se tratam de duas freiras que se preparam para um dos seus frequentes retiros meditativos. Faz uma vénia à imagem de Jesus Cristo fixada na parede branca e sai. As freiras simulam que não a vêem.
Ao dobrar a esquina que dá acesso à sala de costura, Maria depara-se com a Madre Superiora. Faz um suave gesto com a mão e continua em frente. Contudo, aquela ríspida voz detém-na.
– Tens visitas. Vai para a sala de entrada e lá encontrarás quem te procura.
Maria fica surpreendida e dirige-se para o local indicado onde está uma freira que olha absorta para o tecto. Na outra ponta está outra pessoa voltada para a janela com vista para a estrada. Quando Maria fecha a porta, surge, por entre os raios de sol que espreitam pelas grades, o semblante de Celeste.
– Enfermeira Celeste! Que alegria! A minha querida amiga Celeste! Que bom vê-la aqui! Que surpresa!
Maria está eufórica. A freira tosse com o intuito de acalmar o entusiasmo. Aproxima-se de Celeste e abraça-a. Desejaria que aquele abraço se eternizasse pelo que significa de afecto, sinceridade e gratidão. Celeste fica comovida pela atitude de autêntica espontaneidade. Não podem estar à vontade porque a presença controladora da freira não permite que Maria fale sobre os acontecimentos ocorridos na Casa, que tanto a amarguraram. Mas Celeste compreende e começa a falar sobre a sua vida, que neste momento não está a correr bem.
– A Tia Amélia tem uma idade avançada e está doente. A única pessoa que a pode ajudar sou eu. Mas como trabalho no Hospital, não posso dedicar-lhe a assistência que necessita. Muitas vezes estou de serviço à noite e ela tem de ficar sozinha, o que me deixa preocupada. A minha vontade era estar sempre ao seu lado, mas tenho de trabalhar para ganhar a vida, que está cada vez mais cara. Por isso resolvi procurar alguém que esteja disponível para acompanhar a Tia Amélia.
– E já encontrou alguém? – pergunta com a voz tremelicante.
– Penso que sim, Maria.
– Tem de ser uma pessoa de confiança, não tem Celeste?
– Claro. Não vou deixar a Tia Amélia com alguém que eu não conheça…
– Pois claro, tem toda a razão.
Os olhos de Maria enchem-se de lágrimas, identificando-se como a pessoa ideal para tratar da senhora, mas não tem coragem de transmitir esta ambição. Celeste percebe o que Maria pensa naquele momento, quer através das expressões vocabulares quer do rosto desanimado. Por isso acaba com este jogo de palavras.
– Penso eu, não sei, mas tu não deves gostar de viver aqui, pois não? Ou estarei enganada?…
– Não está nada enganada. Odeio, Celeste, odeio viver aqui. Acredite em mim.
A freira controladora olha-a com desprezo. De mãos postas, dirige o olhar novamente para o tecto e exclama: “Perdoai-lhe Senhor porque ela não sabe o que diz”. Persigna-se e mantém a sua posição de matrona fiscalizadora.
– Falei com a Tia Amélia e ela concordou que tu a ajudasses a passar os dias com mais alegria.
– Oh! Celeste, eu não acredito! Meu Deus, não pode ser verdade! Isto é um milagre!
A freira olha-a de alto e baixo, cruza os braços, exibe um ar de desdém e murmura:
– Graças a Deus que esta herege se vai embora. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Ámen!
– Maria, acalma-te e ouve. A Tia Amélia fica muito triste quando está só. Não podemos pagar-te, porque a sua reforma é pequena e o meu ordenado é para a alimentação e outras despesas, como deves calcular. Temos um quintalzinho que nos abastece de legumes, batatas e fruta, que é uma grande ajuda para vivermos um pouco melhor. Estás contente com esta surpresa?
Maria abraça-se a Celeste e aceita dar a sua ajuda sem receber nada em troca. Só quer a sua amizade e a da Tia Amélia. Tentará arranjar freguesas para consertar roupa e contribuir para as despesas da casa. Celeste fica muito grata e promete que depois da autorização, que irá ser concedida pela Madre Superiora, a virá buscar dentro de pouco tempo.
A freira avisa que o tempo da visita acabou:
Maria e Celeste despedem-se com um beijo carinhoso.
– Vá, toca a andar para a camarata, sua cara de sonsa. Acabou-se a conversa com a amiguinha.
José Eduardo Taveira