Já lá vai o tempo em que fizeram Matilde sentir-se especial.
Na escola, recebia as recompensas da sua dedicação, os seus pares e professores incentivavam a escrita e a representação teatral e eram tantas as suas certezas.
Confiava, sobretudo, nas suas capacidades e na justa retribuição do seu esforço. Tudo estava bem no mundo.
Em conversas de café, como esta que tive com a Matilde, constato que hoje se vive numa época de descrença, ou mesmo de incoerência e de alienação.
Matilde gostava de escrever, mas hoje a escrita generalizou-se, banalizou-se, massificou-se, e por fim tornou-se um mercado onde o pequeno escritor que já não quer guardar os seus pensamentos numa gaveta, mais não pode fazer do que tentar partilhar o que pensa ou sente com recurso a blogs ou a meios alternativos. Nas grandes editoras não há espaço para quem não vende e as pequenas editoras têm um preço que Matilde não pode pagar.
É justo. Temos a mão invisível do mercado a funcionar.
Para quem escolheu o teatro, como a Sofia, a vida não é mais fácil. Existem trabalhos pontuais, na generalidade não remunerados, enquanto se espera por formação, por um trabalho que permita fazer carreira, pela grande oportunidade de ser a tempo inteiro aquilo que o coração escolheu, ou simplesmente por um dia melhor.
O mesmo se diga do João, que escolheu a música. Teve oportunidade de ir para o Conservatório, tem jeito, dedica-se pelo menos 5 horas por dia, em suma, há anos a fio que investe em aprendizagem, pesquisa, estudo e equipamento. Não sei se conseguirá viver a tempo inteiro do seu sonho.
Mas se olharmos bem, nem só nas artes se assiste a uma crise de procura. A Vanda, que é professora, vai conseguindo umas aulas e explicações pontuais e vai vivendo a sua vida com dignidade mas muitas restrições.
É justo. Temos o mercado a funcionar. Não há ninguém que se possa culpar por isto.
Hoje estas pessoas que, um dia, acreditaram que eram especiais percebem que já não há espaço para elas. Tudo se massificou, tudo se tornou complexo, difícil, ou mesmo inatingível.
Vão lutando cada dia, conscientes das dificuldades, e talvez desistam um dia, guardando na gaveta o poeta, o professor, o ator ou o músico, ou mesmo o canalizador, o eletricista, o marceneiro ou o alfaiate, à espera de um dia voltarem a ser especiais.
Até esse dia vão pagando as suas contas, como podem, aceitando um trabalho que não é a sua vocação, vivendo sob o fantasma de obrigações fiscais que não entendem e num mundo muito diferente daquele que julgaram existir.
Percebem que, afinal, são um número, que deixou de haver a justa retribuição pelo seu esforço e acabam por calar-se. E é nesse instante que abdicam que deixam de ser especiais, porque consentem em conformar-se.
Em cada uma das profissões, há sempre alguém a que a vida prometeu mais e o seu valor intrínseco não foi tomado em conta.
A Matilde, por exemplo, confessou-me que deixou de acreditar na justiça, que os ideais de cavalaria e o sistema ético de valores, para ela, não passam de publicidade enganosa. A Sofia quer aceitar um emprego como caixa de um supermercado. O João só daqui a dois anos ingressará no mercado de trabalho e a Vanda vai fazendo ginástica para pagar a escola dos filhos.
Todos eles deixaram, de uma forma ou de outra, de acreditar. Em si, nos valores das pessoas que os rodeiam e na justiça intrínseca que possa existir de receber o proporcional ao mérito, ao esforço e à dedicação.
Quanto a mim, que me prezo de ser objetiva, faço como São Tomé.
Ana Brilha