Temos que escolher entre um mundo natural, com a sua própria ordem e com a nossa liberdade de escolha para viver, e um mundo natural e humano construído por nós, mas com egoísmo e só para a nossa vida. Essa escolha tem que ser feita pela necessidade de caminharmos para uma ordem que recapitula a perfeição humana, no mundo do ser criança, do ser jovem e do ser adulto.
Ainda me lembro das primeiras sensações e do eco da gritaria ao sairmos da escola, do pontapear as pedras e empurrar para o chão os companheiros de que às vezes mais gostávamos. Era uma certa maneira de dizer: “Até amanhã!” Tornava-se na forma de manifestar a amizade de qualquer modo. E se não era, por vezes, o melhor modo, a experiência realizava-se e o sentimento começava a tornar-se forte.
É neste quadro de efeitos temporários e distantes que começa a nascer para cada criança urna nova perspectiva sobre o que vai ser novo e diferente no futuro. Novos companheiros, outras situações que desconhecemos e, porventura, mais tristezas e alegrias sobre as passagens ou reprovações na escola; perturbações da nossa inteligência, que ainda não está completa, nem pode ainda compreender todas as razões.
Mais quietos e mais conformes com a nossa natureza de meninos, vamos situando a nossa vida e fazendo questão que ela seja como queremos. Construímos os nossos desejos num jogo de forças e de relações sociais que são a expressão da educação e da ordem dominante. Inventamos soluções para as nossas dificuldades e suprimos as faltas de todo o tipo de coisas, pelas respostas que encontramos. Às vezes vivemos alheados de tudo o que não queremos sem a certeza de porque o fazemos, mas com a ideia de que resistimos deste modo à forma de um mundo que nos querem mostrar. Um mundo que é nosso, mas muito diferente daquele em que vivêramos antes, que era completamente nosso, porque éramos pequeninos e não conhecíamos classes. Agarramo-nos ainda a ele com todas as nossas forças e todas as recordações que guardamos, pensamentos que se tornam na força que nos mantém na certeza de que era bom viver como quando fomos pequeninos. Nesse mundo não éramos estranhos e sabíamos como fazer. Não tínhamos que nos mostrar nem ganhar consciência das nossas dificuldades. Afinal, alhear-se nesta fase que recapitula a fase de menino é uma forma de resistir a uma outra ordem que vamos pouco a pouco reconhecendo como necessária, já que o outro plano do nosso ser, o plano da responsabilidade, vai rasgar o véu que escondeu anteriormente os grandes mistérios da nossa vida.
Agora já não somos mais, nós e o mundo, que era nosso e só entrava nele quem nós queríamos e gostávamos. Já não podemos fazer o que queremos nem que seja para chamar a atenção e sermos o centro da vida. As interrogações nesta fase da responsabilidade, no que ela tem de limites, tornam-se na plantação do querer existir em cada momento conforme as sensações que temos. Sensações que ainda não são verdadeiramente nossas porque lhes falta ainda um sujeito determinado a existir livremente, sem qualquer condição que não seja a de ser sujeito num mundo de objectos. A adolescência rompe numa atitude descomprometida com o mundo e com as pessoas; não acontecem factos que entusiasmem muito e agradem o suficiente. O mundo e as pessoas configuram expressões e formam sentimentos que são hipoteticamente contrários às soluções que os adolescentes desejam e acreditam ser possíveis. A figura do sujeito determinado a existir livremente não se exprime ainda senão como ideal, não tem ainda suporte de atitudes completamente livres. O que os jovens vêem e sentem nesta altura desliza para emoções que não trazem nada de novo e que permaneça muito tempo. As atitudes são ainda frágeis e não libertam a vontade de tudo fazerem conforme lhes dá mais gozo e não do que seja melhor para todos. “O princípio do prazer e o princípio da responsabilidade” não são muito distintos nos seus limites nem nas suas formas. Nesta altura os jovens adolescentes não deixam os domínios do prazer, pois assumem-se “senhores do que sentem e querem”, participam na cooperação social pelo ensaio da responsabilidade, mas sentem-se “estrangeiros” quanto às regras que são socialmente adoptadas e que têm de respeitar. Não sei se é da nossa própria natureza resistir na revelação de qualquer plano, em que não fizemos as regras; sei que mesmo bastante mais velhos não nos é fácil conhecer e aceitar sem qualquer constrangimento na vontade o que é escrito e regulado para qualquer estrutura organizativa e sua aplicação prática. Sei que há em toda a nossa vivência e nos seus diferentes actos diversos pontos críticos entre a concordância e a decisão. Julgo não ser despropositado dizer que, na revelação dos planos, o dia e a noite têm um ponto crítico real, um ponto em que há tangência da noite com o final do dia e vice-versa. Com esta ideia pretendo justificar uma certa ordem natural e social e as diferentes perspectivas em que nos temos de colocar. Digo que tem que haver uma superação pessoal das qualidades do dia para o experimentarmos nos diferentes modos e sentirmos profunda e implicitamente as suas diferentes mudanças. É assim que se vivem estes planos elementares da unidade que se chama dia e é assim que se compreende que há na natureza uma certa ordem cíclica e que as mudanças desta resultam de transformações. Pretendo mostrar, afinal, que mesmo sobre a nossa relação com a natureza existe uma certa necessidade de ajustamento e superação dos pontos críticos em resultado das transformações naturais e que o homem não o faz com voluntarismo absoluto. Creio, entretanto, que é esta atitude que faz com que o homem seja um ser cultural por excelência e me leva a compreender que seja da nossa natureza a vontade de resistir a tudo o que está feito e a dar-lhe outra forma. Vejo, porém, que este grau de resistência vai mudando à medida que vamos sendo maiores e que os limites da sua maior complicação se verificam em certas idades e nos domínios da ordem humana e social. Concluo, porém, que mesmo na ordem natural a nossa relação tem de ser de superação e ajustamento, o que quer dizer que não podemos proceder em contradição para vivermos naturalmente bem. Logo, esta atitude de resistência humana será porventura natural, mas torna-se em certas fases da nossa vida numa força de acção muito poderosa pelo que deverá ser muito bem apreendida na ordem social para que cada um de nós não se perca no seu crescimento correcto.
Páginas 25 a 29