Crónicas da Brilha: Porque eles sabem o que fazem.

 



A sujidade da metrópole sufoca-me aos poucos. Tombam palavras da ruína de paredes sujas, tropeço nas embalagens que o vento empurra no caminho e abate-se sobre mim um grande cansaço.
 
Fico com a nostalgia das casas no Alentejo, caiadas de branco à falta de melhores dias para usar tinta a sério, dos quintalinhos arranjados e sem ervas, do cuidado diário de quem ama e de quem estima o que é seu.
Na cidade, não. Cinzento a toda a volta, cinzento nos corações das pessoas que correm apressadas atrás do ponteiro.
 
Será só isto? Ou haverá algo mais?
 
Ainda vejo aqui e ali um pontual varredor de ruas que me dá os bons dias, mas no resto instalou-se a desumanidade das máquinas, dos ruídos troantes das engrenagens, da sujidade que se cola à pele e à alma das pessoas quando o seu motor já não bombeia sangue mas óleo e detritos. Sobre esses esqueletos da civilização voam pássaros famintos de árvores e rasgos de brisa entre as folhas ao sol.
 
Desumanamente sós por entre os escombros de uma civilização falida, polida de miséria escondida, que não se vê, deseducada pelo contacto com a imensa lixeira que borbulha aos pés da cidade, queixamo-nos e não fazemos nada.
Mas sobrevive ainda no estético a nossa humanidade, na arte inútil e controlada de autómatos a quem se cortou o pio com centenas de anos de opressão expressa ou implícita, daquela que ainda existe.
 
É só isto? Ou há algo mais?
 
Fico com o estômago cheio da tinta dos grafitis que ninguém limpa, das pedras dos prédios em ruína, do sarcasmo, do desinteresse, das correntes dos escravos que as trazem rentes ao peito num gesto de amor.
 
Consumo as minhas horas, mordo-as sofregamente por nada mais poder fazer com elas e espero, talvez insensatamente, que as paredes voltem a ser brancas e as gaivotas não tropecem nas latas que atiramos inconscientemente uns aos outros num gesto de desresponsabilização consciente.
 
À noite, no caminho de casa, ou de manhã, a caminho do trabalho, é quando mais me oprime o cinzento que se instalou em volta. Lamento os pardais de telhado que pousam em construções de plástico desgastado, lamento os pombos que debicam beatas nas estações e lamento profundamente não vermos, como as crianças vêm, que nos estamos a tornar numa alegoria.Quase vejo acontecer o conto que trago soterrado na memória, desde quando não sei, em que uma civilização era tragada pelo seu próprio lixo.
 
No que me toca, faço o que posso: reciclo, reutilizo, respeito, tento deixar algo de verde ainda como herança aos filhos que não sei se terei algum dia.
Seja como for, e perdoem-me o desabafo, cansa-me todo este desleixo de não querer saber. Garanto-vos, como dizia o velho índio, que quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver secado, quando o último peixe for pescado, vão perceber que o dinheiro não se come.
 
Ana Brilha
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