A estreia literária de José Solá
( Recordando velhos amigos, transcrevo este artigo do jornalista e amigo da velha guarda, o Eurico José), publicado no jornal de língua portuguesa: Portuguese Times, de New Bedford.
Tenho o prazer de vos apresentar José Solá, meu amigo da adolescência e um
novo escritor português. Acaba de publicar a primeira obra aos 71 anos e não
deixa de ser uma boa idade para iniciar a carreira de escritor ou qualquer
outra carreira sonhada, desde que não seja maratonista.
Muitos autores começaram a carreira literária já com certa idade e, para a
brasileira Cora Coralina, Solá ainda vai muito a tempo. Considerada uma das
maiores poetisas e contistas de língua portuguesa do século XX, esta senhora
começou a publicar os seus livros aos 76 anos.
Portanto, não existe idade certa para escrever um livro. Basta, claro, ter
talento e criatividade. Muito menos existe uma idade para começar a ler e,
quanto a isso, o grupo de que o Solá e eu fazíamos parte era frequentador da
biblioteca das colectividades de recreio de Almada, a chamada Outra Banda,
onde nos criámos.
Naquele tempo, há 50 anos, a Outra Banda não era o actual prolongamento da
área metropolitana de Lisboa pela margem sul do estuário do Tejo. Eram
quintas e pequenas freguesias. Não havia a ponte 25 de Abril e quando íamos no
cacilheiro para Lisboa era como viajar para outro país. Em Almada todos nos
conhecíamos da escola, do autocarro, do barco, do café ou da colectividade a que
todos tínhamos que pertencer. Eu era da Academia Almadense, cuja biblioteca
foi criada por Romeu Correia e onde ganhei o gosto pelos livros, Solá
talvez fosse da Incrível Almadense, cuja biblioteca também foi reactivada pelo
Romeu, o responsável pelos interesses literários da minha geração.
Romeu Correia nasceu em Cacilhas em 1917, ano de muitas outras ocorrências,
desde a revolução soviética na Rússia à aparição da Virgem em Fátima,
segundo os pastorinhos Jacinta, Francisco e Lúcia. Era funcionário do Banco
Nacional Ultramarino em Lisboa, mas mais conhecido por ter sido campeão de boxe e
de atletismo do que propriamente como escritor, embora naquele tempo já
tivesse publicado meia dúzia de livros. O primeiro, o livro de contos Sábado
sem Sol, saiu em 1948, mas foi apreendido pela PIDE.
O curioso é que, apesar da PIDE manter a Academia Almadense e as outras
colectividades debaixo de olho, tive oportunidade de ler, por exemplo, as
proibidas traduções brasileiras do russo Mikhail Sholokhov e a trilogia
Subterrâneos da Liberdade, Jubiabá e outras obras de Jorge Amado.
A Censura portuguesa não era muito atenta e, já depois do 25 de Abril,
Romeu recordou um episódio ocorrido na Vértice, onde tinha colaborado. O director
desta revista literária de Coimbra, o poeta Joaquim Namorado, gostava de
brincar com a censura e durante alguns números publicou na contracapa a
tradução de pensamentos de Karl Marx, mas assinados com o pseudónimo Carlos
Marques. E um dia apareceu na revista um PIDE a prevenir Joaquim Namorado de que
andavam com o tal Carlos Marques debaixo de olho.
Romeu Correia tinha apenas a quarta classe e foi toda a vida funcionário do
Banco Nacional Ultramarino, em Lisboa (ia e vinha no cacilheiro), mas
faleceu em 1996 deixando uma obra de escritor e dramaturgo traduzida em chinês,
húngaro, checo, alemão, russo e Braille. Mas naqueles dias nem o Romeu
agradava ao nosso grupinho, que reunia à noite no Café Cadeal, sonhando
revolucionar a literatura portuguesa e cortando na casaca dos intelectuais em voga.
Nem Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro escapavam à crítica, embora a este
último eu reconhecesse o mérito de, por cada artigo publicado no jornal O
Século, ganhar 500 escudos, à época o salário mensal de muito chefe de família.
Além deste vosso criado, que ao tempo escrevinhava (à borla) no já
desaparecido Jornal de Almada, que o padre Manuel Marques lançara em 1954 e foi
escola de muitos jornalistas, faziam parte do grupo José Contreiras, que também
enveredou pelos jornais, mas nem ele nem eu publicámos o livro sonhado na
adolescência, embora tenhamos passado a vida a escrever. O Carlos Pena, talvez
o que tem mais que contar (vive em França e fez parte da célebre Legião
Estrangeira), mas nunca publicou nenhum livro e não consta que tencione fazê-lo
o. O meu primo Victor Mendes, o mais novo de todos, acabou por ser o mais
sensato, deixou-se de veleidades literárias e agarrou-se foi aos livros de
Direito. E o Zé Valente, que trabalhava no departamento administrativo do Estúdio
Cor, editora de que José Saramago foi editor literário de 1959 a 1971.
Valente era de todos nós o que tinha mais contactos no meio literário e
também falava em escrever o seu livro, mas não me parece que o tenha feito. Foi
despedido em 1966 e confidenciou-me que o seu amigo Saramago tinha
intercedido por ele.
Em 1999, já Nobel da Literatura, Saramago veio aos EUA receber um
doutoramento honorário na Universidade de Massachusetts em Dartmouth e tive a honra
de o entrevistar para o Portuguese Channel, mas a entrevista começou mal.
Saramago discursara na biblioteca Casa da Saudade, contava com cobertura
televisiva, não viu nenhuma câmara e ficou chateado com o Portuguese Channel.
Expliquei que a televisão portuguesa de New Bedford não era propriamente a CBS
ou NBC, mas o homem continuou irritado e, antes que se levantasse e abalasse,
tentei outra abordagem, lembrando-lhe o Valente.
“Temos um amigo comum. Lembra-se do Valente dos Estúdios Cor?”
“O Valente?!”, Saramago ficou perplexo. “É engraçado. Não sei dele há mais
de 40 anos e agora, nos EUA, estamos a falar dele”.
A recordação do amigo comum acalmou Saramago e fez-se a entrevista.
Mas, como dizia, nem mesmo o Valente, apesar da amizade com Saramago,
publicou o livro de que tanto falava e o único do nosso grupo que, até agora, o
fez foi Solá.
Nasceu a 25 de Julho de 1940, filho de uma família de comerciantes de
Lisboa pelo lado paterno e de uma família de pescadores algarvios pelo lado
materno. Trabalhou desde muito novo tendo exercido diversas profissões,
conseguindo firmar-se no ramo da construção civil, onde chegou à categoria de técnico
de obra, chefiando a secção técnica de uma empresa. Durante o dia, Solá
lidava com ferro, cimento e a brita, mas as horas livres eram dedicadas à
leitura e à escrita.
Principiou a escrever com onze anos e aos 14 conheceu a primeira recusa das
editoras aos seus originais, mas isso em nada beliscou a autoconfiança e,
já adulto, publicou contos no Diário de Lisboa e colaborou no Jornal da
Fundação Ricardo Espírito Santo. Depois deu prioridade às coisas práticas da vida
– o trabalho e a família. Continua a ser da Outra Banda, mas reside agora
no Montijo e, já na reforma, voltou a dedicar-se à literatura. Como os sonhos
nunca envelhecem, voltou a escrever com a energia dos tempos da juventude
e acaba de publicar o primeiro livro.
Ernest Hemingway costumava dizer que escritor é aquele que termina um
livro. Solá já concluiu quatro livros: dois romances, As agruras do Mal e
Ganância, e dois volumes de contos intitulados Contos Polémicos.
Optou pela publicação de Ganância, o mais recente, cuja distribuição é da
editora Sítio do Livro e pode ser adquirido pela internet
A ganância em causa vem a ser D. Ganância Maltesa, directora da Escola para
Aperfeiçoar Ricos, onde o dr. Doente Forreta é docente e uma das alunas a
menina Lucrécia Malquisto, filha de Vito Cícero Malquisto, o rei americano da
Associação das Casas de Penhores de Apoio Financeiro aos Países Pobres do
Terceiro Mundo.
A índole contestatária da prosa de Solá não é alheia às suas circunstâncias
de vida, nomeadamente chatices com a PIDE. Mas o desencanto com que vê
Portugal é pelo menos divertido.
Para Solá, o país vai à falência e o “imponente edifício onde funcionou
pelos anos fora a Assembleia da República” é comprado por uma empresa chinesa
de supermercados.
Um remate que, há 50 anos, talvez não tivesse ocorrido a nenhum dos
aspirantes a escritores que se reuniam no Café Cadeal, mas hoje os tempos são
outros e o final do romance do Solá faz-me lembrar uma velha anedota almadense: o
país chegou a um tal estado que o Cristo Rei desapareceu do Pragal e foi
pregar para o deserto, deixando os camelos em Belém.