UM PEDAÇO DA ESPERANÇA QUE NASCEU EM ABRIL QUE NOS QUEREM ROUBAR.
É QUE, DIZEM,” VIVEMOS ACIMA DAS NOSSAS POSSIBILIDADES”
NEM DE FELICIDADE SE PODE TER UM NADINHA DE RIQUEZA
(…)
Um mar feito de gente que acorre às ruas como se fosse torrente de rio caudaloso. Chega e engrossa por todos os lados, parece que não tem fim. “É um rio imenso e eterno que corre da terra para a terra.” – Diz de si para si, de sorriso a enfeitar-lhe o rosto que, de tão gretado, parece, (no hábito de todos os dias), ser feito de tristeza.
Depois, de novo, pensa: “Não existe tanta gente assim. Este caudal humano é maior do que a cidade. Onde já se viu, mais gente do que cidade, do que terra, do que sitio, até do que País. E assim ele acaba pensando que as portas dos cemitérios se escancararam para que os mortos saiam das tumbas e também venham a festejar. A alegria que transborda de dentro dos vivos é tanta e tão intensa que contagiou os mortos. Erguem-se das covas para verem o que nunca viram em vivos, (ou será que sempre estiveram mortos?)
João Boa Brisa enche os pulmões daquela brisa feita dos frescos do mês das águas mil, expele-o, e volta a encher novamente os pulmões. “Sabe bem respirar assim, engolir estas golfadas do nosso ar, sentir os cheiros da terra de mistura com as neblinas que estão chegando do rio ali em baixo, e que começam a amarinhar pela cidade a dentro.” As gentes sobem a avenida agora da Liberdade e vão de parede a parede dos prédios. É uma massa compacta que se destina a andar em frente, a caminho de um destino que é de todos, que se fez da vontade de alguns como oferta para todos.
Na sua frente surge, quieto, imóvel, um tanque de guerra. Um de três. Os outros estão mais à frente, imobilizados e cercados pelos rostos que sobressaem, sorridentes, da massa imensa de gente que os parece abraçar num amplexo de fraternidade. Que ideia, abraçar um pedaço da guerra. Mas não. Aquilo ali, não é um tanque, nem os outros, um pouco mais por adiante; são como vasos gigantes de flores a fundirem-se na multidão. E aqueles tubos não são canhões. Apontam ao céu a indicar um rumo, uma vida, uma nova razão de ser para milhões de pessoas, seres humanos que, não sendo iguais, na friagem daquele dia que vem nascendo se sentem irmãos.
É um daqueles raros momentos em que nos sentimos uma família feita de milhões de pessoas, diferentes em tudo, mas iguais na certeza de que queremos ser livres. Como se a liberdade não fosse a miragem que sempre foi. Quem pode, quem se atreve a ser livre na desumanidade de um mundo feito de tantas e injustas incertezas? Para os homens e as mulheres deste País as únicas certezas da vida limitam-se a saber que existe a morte, que os espera, para muitos como um prémio de consolação para as misérias passadas em vida.
João descobriu que decorria uma revolução quando, no barco das cinco da manhã, um companheiro de viajem lhe perguntou: Para onde vai vossemecê, homem? Ora, para onde quer você que vá, se não, como sempre, para o calvário do trabalho? E você, vai para onde? Eu vou para casa, mas, sabe, anda por aí uma revolução, pelo que, desde as tantas estão a dizer pela rádio. Ó meça, uma revolução, diz você? Sim. Estive a ouvir as notícias no transístor. Trabalhei toda a noite, no estaleiro da Lisnave! Boa casa, essa; sempre me disseram que pagam bem, que se ganha bom dinheiro. Depende, sabe, depende do trabalho que se faça. O seu é um trabalho duro? Nem lhe digo, amigo. Trabalho na limpeza dos tanques dos petroleiros, onde transportam a nafta. Estoira-nos com os pulmões, e até se arrisca a vida. Porquê? – Inquiriu João. – Ora, amigo, por causa dos gases. Quando são nocivos fica-se logo ali, que nem um passarinho! Assim, sem mais nem menos? É como lhe estou a dizer! Então e vocês arriscam a vida sem protecção alguma?! Não. Sem protecção não. Temos os químicos. Os químicos? Sim, os técnicos, que fazem descerem aos tanques uns aparelhos que acusam os gases que causam a morte. Mas sabe, há dias maus. Os que se descuidam e descem antes da intervenção dos químicos, podem não subir…
– Uma revolução, diz você, – disse João, como se falasse para si mesmo. – É isso, amigo, uma revolta. É o que toda a gente está a falar. Não é amigo? – O homem interpelou outro passageiro, que se apressou a confirmar com um aceno de cabeça, enquanto dizia: Pode crer que é verdade. Pergunte aos outros. É a tropa que se revoltou. Já não era sem tempo, com toda essa mortandade que tem havido pela África…
– Uma revolução – voltou a murmurar, como se falasse apenas para si. E como vai ser em Lisboa? Vamos a ver. – Disse o outro.
A viagem foi durando uma eternidade. João soube pelo companheiro de ocasião que desde a madrugada a rádio só transmitia marchas militares. Diziam:”Aqui, comando das forças armadas” e mais coisas que aquele amigo de ocasião lhe ia contando. Mesmo uma revolução à seria, diz você? Sim, pelo que dizem, que ainda não vi; mesmo uma revolução.
Para as bandas do grande oceano, o vermelho do Sol inundava de luz as nuvens mais de névoas esfarrapadas a destapar um azul que ressuscita num céu sem fim. O barco vai lento, sem que se saiba porquê. Os passageiros conversam uns com os outros, conhecidos ou desconhecidos, e o tema é o mesmo: uma revolução, em Portugal, na capital, em Lisboa, terra onde os anos passam a dormir numa sequência de tempo que não parece ter fim; o tempo e as pessoas, que aos poucos, (quando chega a sua hora), é como se morressem sem nunca terem vivido.
Os portugueses por essa época, não viviam, apenas sonhavam o que gostariam de ser; o sonho é fácil e sem custos. É permitido sonhar, desde que não se fale durante o sonho. Falar nunca. É um costume antigo de séculos, desde que as caravelas recolhiam as suas velas latinas para fundearem a meio do rio, na espera que os homens do Rei passassem a revista ao barco, fizessem relatórios, guardassem nas arcas fechadas a cadeado os mapas desenhados a bordo pelos cartógrafos. O que somos e o que fazemos só a nós diz respeito. Guardamos, (desde esses tempos), a dor que sentimos mais as alegrias que gostaríamos de ter na arca da alma, e só os mais chegados podem partilhar um pouco do nosso Eu. Daí a pobreza envergonhada que fez de nós arremedos de gente, que se mostra ao mundo dentro de um fatinho coçado, cerzido e engomado, camisa de popelina barata com os colarinhos esboroados pelo uso, olhos de gente que aparenta não ser triste, gente que quer viver. E vivemos, apesar de tudo vivemos. Não sabemos como, mas o certo é que se vive, um dia de cada vez, dentro do nosso universo feito de sonhos, as glórias de uma História inundada de lágrimas e de sorrisos porque o Rei se veste com o ouro e as jóias, as sedas e os brocados que tiramos ao mundo só para ele, pouco ou nada ficou para nós.
João vê pela amurada do barco uma Lisboa que se aproxima, ainda enregelada pela frieza da noite que se fez de alegria, uma noitada que adivinhou feita de vultos de soldados apressados e cansados pela pressa de fazer uma revolução.
Na frente o pontão do cais de acostagem. Os marítimos que se ajeitam para lançar os cabos. Então amigo, você volta para trás no mesmo barco? Eu? Não, que ideia! Sabe, em toda a minha vida nunca vi uma revolução, e, que me lembre, não me recordo de gente da minha família que se recorde de alguma vez ter visto uma. Então desembarca, é? Sim! Bem, vamos os dois, se você não se importar da minha companhia! Então você depois de uma noite de trabalho não vai para casa? Sabe, também nunca vi uma revolução! Pois, tem razão, quantos de nós podem dizer que viram uma? Mas, e a família que o espera em casa não fica preocupada? O companheiro de viagem encolheu os ombros. Sabe, a mulher vai pensar que estou a fazer mais horas…
O cacilheiro encostou no pontão entre o ranger dos cabos esticados. O som das máquinas decresceu, começou a perder-se entre os ruídos daquele dia diferente. Foram colocadas as pranchas e aquele mar pequeno de gente encheu o pontão, baixo, por via da maré que ainda não teve tempo de subir para espreitar a terra naquele dealbar de dia ainda com pouco sol. (…)