Tenho resistido, não sem algum pudor pessoal, a escrever como mandam as modas. Sou um bicho de rotinas, defendo-me, e não concebo que, de uma penada, se mude a língua por decreto, tornando o certo em errado, o académico em iletrado.
De nada serve tal defesa, bem sei, mas gosto das letras que não se lêem e que a nossa mão herdou dos tempos em que as palavras eram maiores e mais complicadas e traziam no seu seio o travo das origens primevas, carregadas de história e mistério, tal como trazemos no corpo, sem o sabermos, a informação genética que também se não lê mas lá terá a sua função (se aceitarmos que a natureza tem sábios desígnios e não que seja uma tola analfabeta).
Há já quase cinco lustros que me ensinaram a escrever e não me acomodo bem a estas mudanças bruscas que quase me fazem escrever a língua dos nossos compatriotas.
Até a leitura se me torna penosa tarefa de esquecer que ora se escreve outra língua e que não são erros aquilo que peja as folhas das últimas reedições dos clássicos ou dos espetáculos que têm os seus espetadores, que é como quem diz pessoas que espetam coisas.
Já Saramago foi brindado com o acordo ortográfico e sangra-me o peito sobre os seus Cadernos de Lanzarote o não conseguir acompanhar estas mudanças que não entendo e que não julgo necessárias.
Talvez seja saudosista, talvez seja anacrónica. Enfim, lá me hei-de render um dia, mas gostava da maneira como escrevíamos.
Se não me falha a memória, houve já três acordos ortográficos, todos eles vocacionados para as publicações oficiais e para o ensino, que é como quem diz que isso há-de dar frutos daqui a vinte anos, mas logo os periódicos abraçam as modas, logo as empresas se revelam pressurosas em estar na frente das novas tecnologias e literacias, e o desgraçado do escritor descobre que, enfim, o Estado lhe trocou as voltas e afinal já não sabe escrever.
Houve tempos em que era o povo que impulsionava a evolução da língua. Era um processo lento, fermentado e pouco uniforme. Hoje, essas mudanças fazem-se por decreto e são rápidas, brutais, inexoráveis. É a lei que nos ensina a escrever, enchendo-nos de vergonha se não acompanhamos esta moda cheia de boas intenções e que é vocação universalista da língua pátria e a sua difusão.
Confesso que tenho ainda resistido, já cheia de dúvidas, de angústias, de vacilações, mas ainda com os dedos presos a rejeitar seguir o que já é definitivo.
A verdade é que não consigo ensinar as minhas mãos a serem obedientes, elas rejeitam esta uniformidade que lhes castra a poesia de (quem sabe?) inventar palavras novas.
Não sei até quando resistirei, não tão só como pareço, nesta teimosia de escrever como me ensinou a professora Florinda, petrificada na minha memória como a figura da mestre-escola que tudo sabe.
Onde estiver deve balançar a sua cabeça em sinal de incredulidade e prometer reguadas a quem fez tamanha marotice aos pobres coitados que, como eu, deixarem de saber escrever.
Ana Brilha