ENTRE AS MUITAS COISAS QUE TENHO ESCRITO E QUE NUNCA VÃO SER PUBLICADAS (POR FALTA DE INTERESSE COMERCIAL, COMO DESCRIÇÃO DAS MAMAS DE UMA QUALQUER AMANTE DE UM IMPORTANTE PRESIDENTE DE CLUBE DE FUTEBOL, POR EXEMPLO), PARTILHO COM VOCÊS ESTE BREVE TRECHO.
RELATOS DA VIDA DA ALTURA, (NÃO TÃO DISTANTE), SITUAÇÕES A QUE ASSISTI, OU MESMO PORQUE PASSEI.
E PORQUE VIVI O DESCONFORTO DE TAMANHAS INJUSTIÇAS E DESPREZO PELOS DIREITOS MAIS SAGRADOS DO SER HUMANO, NÃO ME CONSIGO CALAR HOJE, QUANDO, COM LÁGRIMAS DE CORCODILO, NESTE TRISTE E MISERÁVEL PAÍS, OS DESCENDENTES DOS MANDANTES DE ENTÃO TENTÃO MONOSPREZAR E HUMILHAR QUEM TRABALHA
(…) – Eu falo por mim, Miguel. – Atalhou o Baltazar. – O que eu gosto mesmo de fazer é mesmo de escrever, mas como isso é uma actividade para ricos, nesta nossa terra, e como a rapaziada tem de comer, vamos fazendo de tudo um pouco.
Baltazar Antunes ficou um momento calado, a olhar em frente. Mas logo continuou. – Na Lisnave as coisas comigo deram muito para o torto. Você, João, percebe alguma coisa de barcos?
– A minha vida é a vida do mar. Fui embarcado. Fui homem de convés e maquinista. Fui náufrago durante a guerra…
– E de petroleiros, percebe?
– Desses não. Desses, só de vista, a vê-los passar ao largo…
– Pois, entendo. Deixe-me continuar.
O Baltazar Antunes encostou-se para trás, no banco. Olhou em frente. Comparado com eles era homem novo. Aí na casa dos sessenta, talvez nem tanto. Tinha feições esguias e uns olhos imprecisos, perdidos no tempo, talvez a ver-se por dentro, ou a idealizar acontecimentos perdidos em distâncias inatingíveis, inalcançáveis para os homens mais normais.
Depois de um tempo assim, com voz imprecisa, mas firme, começou a falar: Nos petroleiros, no fundo, a nafta infiltra-se pelos tanques do lastro. Você deve saber como são. Um labirinto, onde um homem não cabe. Só um rapaz, e bastante novo. Eu era um puto franzino, assim como hoje, enquanto homem maduro. Não era fracalhote. Sempre que agarrava, pode crer que era meu. Voluntarioso, embora do tipo sonhador, e como tal distante. Esse tipo de rapaziada que parece que está sempre ausente, e na verdade, na realidade, está. Como o navio tinha de zarpar um dia depois, fiz a noite. Na altura trabalhar toda a noite dava uma boa maquia. Dava a jorna de uma semana, se bem me lembro. Não era, Miguel?
– Sim. Quase uma semana, mais o dia seguinte, que, por lei, se tinha de descansar…
– É isso. – Continuou o Baltazar. – A nafta, não sei se sabem, come-nos a roupa toda. Aquela coisa pegajosa, preta, com um cheiro penetrante que nos vai comendo os pulmões aos poucos, nos transforma em gente morta, dá cabo de tudo que se lhe chegue, só a pele dos homens é que dura mais tempo. E mesmo essa, que tem de se esfregar com sabão macaco por imenso tempo, debaixo da água bem quente do chuveiro. Como estávamos no verão, num ano quente, eu trabalhei em cuecas. Lembro-me bem. De madrugada, depois do trabalho, um prolongado duche bem quente no balneário e ficava como novo!
– Eu lembro-me disso. – Interrompeu o Miguel. – Mesmo no inverno, de madrugada, sempre que um homem caía ao mar…
– Caía ao mar?! – Exclamou João Boa Brisa.
– Sim, homem. Os que trabalhavam nos baileis, pendurados nas amuradas, a picar a pintura velha do costado. Segundo as normas, quem caísse ao rio ia para casa com o dia ganho. E mesmo com a água gelada, em pleno inverno, muitos lá caíam, de propósito!
– De propósito?! – Sim João. É que valia bem a pena. Estava ganho o dia… E também havia quem ferrasse martelada no dedo, para ir para o seguro e não perder o trabalho!
– O quê?!
– É como lhe digo, amigo João. Quem tinha família a cargo, quando sabia que ia haver balão, para não ficar sem trabalho, pedia ao colega do lado que lhe batesse com o martelo de bola no polegar! Sabe o que era o balão, não sabe?
– Se sei!
– Mas continua, camarada Baltazar. Desculpa a interrupção…
E Baltazar Antunes continuou. Nessa noite o trabalho não correu lá muito bem. Com os rodos fomos puxando a nafta para fora, para zonas com acesso aos baldes, onde os homens adultos a removiam à pá. O grupo de moços estava cansado, ou o cheiro seria mais intenso do que o do costume, ou seria impressão do grupo. Não sei. O que sei é que, do lado dos miúdos, a disposição era francamente má. Miúdos, quero dizer, é força de expressão. Homens, pela imposição da vida. Homens pequenos o bastante para caberem no cavername do navio e puxarem aquela merda para fora. Moços que pela miséria da vida já foram paridos homens feitos! Seria umas três e meia da madrugada quando subi ao convés porque tinha de respirar um pouco de ar puro. Era frequente. Que diacho, não se pode deixar a condição de humano só porque quem manda quer. Vinha preto de nafta. Seria uma figura ridícula, ou patética, não sei, a escorrer a trampa pelo corpo, e foi quando, da ponte do navio, alguém gritou, tirem o tipo daí! Treta de vida. Não me contive, gritei-lhe de volta, Seu filho da puta, seu cabrão de merda, venha você limpar este esterco com a ponta dos cornos. Bom, meus amigos, foi a última vez que trabalhei na Lisnave!
– Quem era o tipo? – Perguntou João.
E o Miguel respondeu-lhe: Um desses comendadores importantes que lucram com a miséria humana mas não gosta de a presenciar…
– Tal como hoje. O que interessa é apenas o lucro. Na época, Portugal era o único país na Europa que prestava semelhante serviço. – Disse Baltazar. (…)
CONSIDERAÇÕES
TEMO QUE O SAUDOSISMO DA FRANJA DOS MANDANTES QUE CONTINUAM A VIVER NO PASSADO NOS ARRASTE NOVAMENTE PARA ESTES TRISTES TEMPOS.
NA ÉPOCA SABIA-SE QUE, DEZ ANOS SERIA O LIMITE PROVÁVEL DE VIDA NESTA ACTIVIDADE.
MESMO ASSIM, EM PORTUGAL, CRIANÇAS ERAM UTILIZADAS NESTA BARBARA ACTIVIDADE.
HOJE, ENCONTRO NAQUELES SÁBIOS (TANTO EUROPEUS COMO NACIONAIS), QUE NOS EMPOBRECEM COMO FORMA DE REDENÇÃO PARA NOS REDIMIRMOS DO PECADO DITO DE “VIVER ACIMA DAS NOSSAS POSSIBILIDADES” OS CONTINUADORES DOS CRIMES DE ONTEM.
José Solá
Escrever se, se tem essa vontade e gosto, é uma atitude que se deve ter. Se é mau ou bom, isso ultrapassa qualquer um, porque cada qual lê o outro à sua maneira. É sempre bom faze-lo. No mínimo, quanto mais não seja, para que nunca nos arrependamos de o não ter feito. Melhor que a atitude de escrever, é a de simplesmente publicar o que se escreve.
Obrigado por escrever… para o mundo, conhecer é certamente um louvor…
B)’iL
GostarGostar
Obrigado pelo seu comentário, amigo. É isso, mas, sempre que recordo a indiferênça e o modo como os portugueses ignoram os seus melhores escritores, (não que eu lhes chegue aos calcanhares), fico perplexo com o destino que este País reserva para quem escreve, por necessidade de espirito e não só. Sabe, no fundo penso que não vale a pena. Na verdade, no que respeita ao intelecto, os nossos compatriotas deixam muito a desejar, e em particular as editoras caça niqueis também!
GostarGostar