HISTÓRIA Nº 6 (COMPLETA)
Idalina do Crucifixo vive vinte e quatro horas por dia entregue a Deus. Talvez se sucedam por isso as suas permanentes e irritantes insónias. Veste de preto porque considera a cor da moral e do respeito. Ela pensa que os outros reagem de forma cerimoniosa quando contactam alguém vestido de negro. As saias cobrem os tornozelos, salientando-se os sapatos usados vulgarmente por ratas de sacristia.
Idalina tem fé. Se lhe perguntarem o que é ter fé, não sabe explicar. Em quem? Em nós próprios? Em Deus? Em outra Divindade? No destino? Na sorte? A confusão é enorme e não vale a pena examinar profundamente as presumíveis respostas. É preciso ter fé e pronto. Quem não tem fé não merece a atenção de Deus. É a sua dogmática verdade.
A sua veneração pela Igreja começou no momento do baptismo, quando sentiu despejarem uma concha de água fria na sua cabecinha oca de criança bem-aventurada. A partir daí ficou preparada para todas as cerimónias e sacrifícios que fazem parte da lista obrigatória do bom católico: a comunhão solene, o crisma, o casamento pela Igreja, as confissões, a eucaristia, as peregrinações, as orações, as promessas, os milagres, as desgraças, as tristezas, as catástrofes, as doenças, o sofrimento, a dor, o pecado, a morte, o inferno!!!
Idalina censura com desdém quem não adopta os seus conceitos de vida em conúbio com Deus:
– Como é possível admitir que homens e mulheres usem roupas de cores berrantes, um insulto à dor, ao sofrimento, à miséria, ao horror das grandes desgraças que proliferam por este Mundo? Como é possível que riam, brinquem e se divirtam como se Deus não tivesse sofrido pela morte do Seu Filho, Jesus amado? Essa gente há-de ser punida com a escuridão devastadora no túmulo dos pecadores. As mulheres não vieram ao Mundo, criado por Deus, para trabalharem fora de casa, desprezando filhos e maridos. Eu sou uma mulher que Deus quer como exemplo para todas aquelas que se esquecem da Sua existência.
Idalina do Crucifixo considera-se um modelo de católica. Uma lição de vida que quer transmitir a todas as mulheres, preparando-as para entrarem directamente no Reino dos Céus, sem fazerem escala noutros apeadeiros a abarrotar de hereges.
É feliz porque Deus a protege de todos os males e vicissitudes da vida moderna agnóstica, que a aflige profundamente. E cumpre rigorosamente o primeiro mandamento da lei de Deus: “Amar a Deus sobre todas as coisas.”
Todas as noites ao deitar, reza a sua oração:
– “Graças Vos dou meu Deus pela vossa misericórdia que usaste hoje para com esta vossa serva Idalina, humilde e pecadora. O Céu é testemunha do vosso poder e da vossa glória. Assim como vos dignastes proteger-me durante o dia, assim também me vigia durante o meu sono, guardando o meu espírito das investidas dos seres malignos, para que eu descanse tranquila em meu leito, depois de haver cumprido o meu dever. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amem.”
Toda a vida dedicou mais tempo às actividades religiosas do que à família. Duas missas diárias, o terço, enfim, um sem número de obrigações que a ocupam, sentindo-se satisfeita e reconhecida com a paz que Deus envia exclusivamente para si. Agradece a bênção que vem do Céu e que a enche de amor e Luz redentora.
Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o Reino dos Céus.
Divorciada e com três filhos, Idalina do Crucifixo suporta sérias dificuldades económicas, mas não se abstém de contribuir com a sua dádiva para sustentar o Padre e as despesas da sua Igreja.
A filha é vítima de violência doméstica, sofrendo os maus-tratos do homem com quem vive, um bandido que ela não abandona por recear represálias. O filho mais novo está preso por assaltos e arrombamentos a residências e automóveis; o mais velho é traficante de droga e desconhece-se o seu paradeiro. O marido abandonou-a. Desempenha actualmente a função de gestor de conta de várias acompanhantes de luxo.
JOSÉ EDUARDO TAVEIRA