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– Você olhe que não me parece que esteja em estado de conduzir!
– Pimenta, você tem cada uma! Mesmo que tenha bebido um copo a mais, quem é que nos vai levar o carro? Você bebeu o mesmo que eu… além que daqui até ao inicio da obra são, se tanto, uns duzentos metros, e no espaço da obra não à problema, ai a autoridade somos nós…
– Mesmo assim, senhor Nunes, temos a obrigação de dar exemplos ao pessoal!
– Temos de exercer autoridade sobre o pessoal, o que é diferente de exemplos. Ó Pimenta, você hoje está chato! Lembre-se que o Benfica ganhou o campeonato! A rapaziada do Porto está de cara à banda; viu o tipo da instaladora dos cabos? Estava fulo. Á muito tempo que não tinha tanta vontade de rir!
Os dois encarregados acabavam de deixar o restaurante no Pragal. À mesa, entre encarregados das diversas empresas empreiteiras com actividades ligadas directamente à construção da ponte, ou responsáveis pelos acessos ou outras obras subsidiárias, médios técnicos, administrativos e outros, naquele dia tinham-se sentado dezassete pessoas, consumindo o delicioso pernil de porco feito no forno de lenha e acompanhando com abundância excessiva de vinho.
A conversa invariavelmente cingia-se aos desafios de futebol, às transferências dos jogadores e às tácticas seguidas pelos treinadores, e naquele almoço em particular tudo se passara à roda da vitória do campeonato nacional.
O encarregado geral da construção das estradas e acessos à ponte, o Nunes, fanático adepto do clube vencedor, tinha-se excedido no consumo de álcool e entrara em discussão com os colegas das empresas do norte.
Nunes embraiou o jipe, destravou e meteu-se à faixa de circulação, sem se aperceber da manobra, o que teve o efeito de o carro andar uns metros aos esses, e o Pimenta pronto reclamou: “ Eu não lhe disse que você não está capaz de conduzir?”
– Homem, e já ali que viramos para a obra, mas se você quer conduzir…
– Eu não. Você tem razão quando diz que não estou em melhor estado; conduza você mas com mais cuidado; quem fez este já não está cá na terra para fazer outro igual, nem um nem o outro, – e na voz do Pimenta percebeu-se um entaramelar quando falou dos falecidos pais, – “ sentimentalismos de piela!” Pensou o Nunes para consigo, e depois concluiu que ele até devia de estar em pior estado, graças às alegrias que lhe tinham dado os jogadores do seu Benfica ao ganharem o campeonato nacional. “Até que enfim, porra, já fazia jejum á uns anos!”
O jipe virou à esquerda, mais um ésse, uma aceleração desnecessária, um chiar de pneus, e o rodado começou enfim a rolar sobre o macadame já cilindrado naquele pedaço de troço que ia em direcção a Setúbal.
– Você está a ficar branco, ó Pimenta, veja lá se não me vomita dentro do carro; e por falar disso…
O Nunes encostou repentinamente à beira e só teve tempo à justa de abrir a porta do seu lado; do outro lado o Pimenta fez o mesmo e os dois homens deitaram para fora quantidades astronómicas da comida e principalmente da bebida do almoço. O primeiro a recuperar foi o Pimenta.
– Irra, que alivio, e felizmente que não estão os homens por perto para verem este triste espectáculo. Está a ver ao que eu me referia há bocado? Era a isto. Parece eu que sou bruxo!
– Tinha alguma razão, – disse o Nunes, – mas um dia não são dias, agora vamos com calma. Sabe, o Benfica não ganha campeonatos todos os dias!
– Só mais uns cinco minutos, para o estômago se recompor…
Os dois homens aproveitaram o tempo para contarem umas anedotas cheias de pormenores e com palavreado no mínimo considerado porco, riram a bom rir, e por fim voltaram ao eixo da faixa de rodagem, com um andamento mais uniforme.
A tarde, abafada, mostrava um céu livre de nuvens, as copas dos pinheiros de ambos os lados das faixas não se moviam um milímetro que fosse; a canícula à distância fazia parecer que uma ténue neblina, difusa, transparente, invadia todo o traçado da auto-estrada.
Na distância, como se saíssem da terra, moviam-se máquinas e homens; percebia-se que a vida corria ao ritmo de uma modorra pegajosa que fazia os homens assemelharem-se a autómatos, rostos pingando suor, mãos calosas agarradas aos cabos das ferramentas, bocas sequiosas, gargantas protegidas pelos lenços colocados na frente das bocas, como se de máscaras se trata-se.
– Coitados, sofrem tormentos neste trabalho!
– É, Pimenta, mas alguém tem de fazer a porra do trabalho, calhou-lhes a eles, é a chatice da vida. – Respondeu o Nunes.
– Você quer dizer com isso que antes eles do que nós.
– Por alguma razão existem encarregados e operários…
No interior do carro o ar condicionado no máximo não conseguia vencer na totalidade a força do calor; os olhos de ambos os homens começavam a querer fechar, também em consequência da excessiva quantidade de álcool ingerido durante a refeição.
– Atenção aos homens! – Gritou o Pimenta.
– Olha, são os mesmos de ontem; são chatos estes gajos!
– Foi você que os mandou estar hoje aqui, lembra-se?
– Sim, tem razão, mas põem-se no meio da via, os burros!
Nunes parou o jipe junto dos três homens, o Pirralho, o tocador de concertina e o homem da saca, baixou o vidro do seu lado, e, cabeça fora da janela do carro, olhou o grupo e perguntou:
– Então ainda precisam do trabalho?
Em uníssono os homens disseram que sim.
– Olhem que isto aqui é trabalho duro, como podem ver pelos vossos colegas além, e então quando se começar com a fase do alcatroamento, se este calor continuar, não vai ser pêra doce…
– Nós estamos habituados a trabalhar no duro!
Respondeu o Pirralho, enquanto os outros dois o secundavam, dizendo que sim com as cabeças.
– Sim?
– Sim senhor, pode ter a certeza!
– Então onde trabalharam vocês? Já fizeram trabalhos destes?
– Eu já. – Respondeu o Jaime Narciso.
– Onde?
– Na construção de estradas no Baixo Alentejo!
– Bom, e então vocês?
– Eu trabalhei toda a minha vida na agricultura! – Exclamou o Joaquim Silva.
– E eu também! – Disse o António Manuel.


