O CONTO
Joaquim Silva, conhecido pela alcunha de Pirralho, isto por ser homem pequeno, franzino e seco, de pele gretada pelo sopro do vento suão que varre o Alentejo durante a calmaria do tempo quente, vindo do Sul, dos lados do deserto que fica no outro lado do mar, era um dos três ganhões que calcorreavam à torreira do Sol, que caminhava para a tarde, – pouco passava das onze horas da manhã, – a estrada ainda em insípida fase de construção.
Os outros dois, também filhos das planícies do Sul, eram o Jaime Narciso, o toca concertina, e o António Manuel, o homem da saca, alcunha recente posta pelos companheiros por transportar todos os seus modestos haveres dentro de uma saca de serapilheira; os três tinham-se conhecido havia pouco tempo, – talvez umas escassas duas horas atrás, – junto ao escritório da firma empreiteira responsável pela construção das estradas que iriam formar os acessos do lado do sul, à ponte, e que ficava perto de uma localidade de nome Casal do Marco, localizada quem vai na direcção de Setúbal.
Aí, o funcionário, á pergunta se estavam a contratar serventes, tinha respondido de pronto: “ A precisar devemos de estar sempre, porque saíem uns e entram outros, é um corrupio constante, mas quem lhes pode dizer a certeza não somos nós aqui.”
-Então é quem? – Inquiriu o Joaquim Silva.
– O senhor encarregado geral!
– E vocês têm, isto se ficar a trabalhar, algum sitio onde um homem à noite possa encostar os ossos? – Questão posta desta vez pelo tocador de concertina.
– Isso, arranja-se depois qualquer coisa, se o senhor encarregado quiser, é tudo com ele, menos a jorna, essa é fixa para quem servir para o trabalho, são vinte e seis escudos por dia!
– E onde falamos com o senhor encarregado?
– Ele anda aí pela obra toda, vocês vão pela estrada, e quando virem um jipe Land-Rover escuro com o nome da firma, mandam-no parar que é ele, um senhor baixo e gordo que trás sempre um capacete castanho.
– E a obra é grande, vai até onde?
– Vai daqui até ao rio!
– Isso são práí perto dos vinte quilómetros! – Exclamou o Pirralho.
– Mas ele anda sempre aqui por perto, vocês vão perguntando aos colegas que encontrem a trabalhar, não hão de andar muito tempo, vão ver!
E assim os três homens partiram estrada a fora, andando pelas terras das bermas, aos altos e baixos, vendo um ou outro cilindro calcando as primeiras camadas de pedra, grupos de homens ajeitando as pedras de maior porte, ou espalhando à pá montes de areia e pedras de diversos tamanhos, – o chamado tout-venant, – de forma a preencherem os vazios que existiam entre as pedras de maior porte.
No troço de estrada que ficava relativamente perto do escritório central da obra, naquela frente de trabalho, percebia-se uma imensa anarquia; não se conseguia definir com exactidão a faixa ascendente e a descendente, os camiões despejavam os pedregulhos sem, aparentemente, qualquer critério, mas, ao longe, a já curta distância, as faixas da futura auto-estrada estavam perfeitamente definidas; de um lado, aquele que seria a mão direita do trânsito, uma das camadas de macadame estava a ser convenientemente cilindrada, e do outro, os cilindros calcavam o fundo da caixa onde seria construído o pavimento.
O som estridente de uma sirene fez-se ouvir, accionada por um homem que furiosamente fazia girar o manípulo de um pequeno volante; “meio-dia, a hora das sopas!” Exclamou o Jaime Narciso, olhando para os outros dois.
As máquinas pararam. As pás e outras ferramentas, como os rodos de madeira, ficaram no local, caídos no chão, a esmo, pois assim já estavam próximo do trabalho, e os homens, uns escolheram uma sombra junto das companheiras que entretanto haviam chegado, cestas de vime nas mãos, os outros foram para junto do lume onde o pinche tinha colocado as marmitas a aquecer, ou tomava conta das postas de bacalhau a assar nas brasas ou das batatas que coziam dentro de latas grandes de atum.
– Vamos à merenda que a morte não tarda! – Dizia um, enquanto o companheiro ao lado respondia a dizer-lhe: “afasta para lá essa boca que eu ainda tenho filhos pequenos para criar!”
Os três homens escolheram poiso à sombra de um pinheiro manso, perto dos outros. O António Manuel ajeitou um toro para o pé do tronco e sentou-se, colocando a saca de serapilheira entre os joelhos, o Jaime Narciso sentou-se mesmo no chão e o Joaquim Silva acomodou-se sentado numa pedra de maiores dimensões, fechando assim aquela espécie de círculo.
Joaquim Silva saltou com a ligeireza de um gato quando percebeu o jipe a alta velocidade arrastando consigo uma cortina de poeira; chegado ao inicio da plataforma da caixa do pavimento, gesticulou agitando furioso os braços acima da cabeça voltado para o veiculo que vinha em tão elevada velocidade; o carro ainda hesitou, abrandou um pouco, mas foi apenas uma fracção de segundo, logo disparou de novo, fazendo roncar os cavalos força do motor, e depressa se sumiu na distância da recta do macadame.
– O tipo viu-me, o desgraçado só não parou porque não quis, o cabrão… – desabafou o Pirralho.
– Vossemecê, ó compadre, quer se matar? Então até parecia que se ia a meter debaixo do carro! – Disse um dos homens sentado perto do grupo com a mulher ao lado.
– Não era o vosso encarregado? – Interrogou o Pirralho.
– Sim, os compadres são para arranjar trabalho?
– Somos, sim senhor, – respondeu o António Manuel, – mas não conhecemos o encarregado, e dentro do jipe iam dois homens…
– Mas era ele, era, – acrescentou o homem enquanto abria a tampa da marmita. – Sabem, não era a altura certa, ele e o colega vão a almoçar sempre lá para os lados do Pragal, e à hora do almoço nunca param… Mas vocês porque não foram ter com ele à do café?
– Qual café? No escritório disseram-nos que o apanhávamos aqui na obra…
– Esses aí não sabem nada; perto da hora do almoço ele e o outro encarregado encontram-se sempre no café que fica perto do escritório, por baixo da ponte, é um bom sítio para o apanharem…
– Então e depois do almoço, devem de voltar para tomar a bica?
– Não, nessa altura aproveitam para ver os trabalhos que ficam perto das obras do encontro…
– Então hoje somos capazes de não conseguir falar com o homem…
– Ó compadres, vocês escolhem uma boa sombra aí mais para diante e estão à coca, quando virem o jipe saltam logo para a estrada que o homem assim pára. Mas porque não vão a Lisboa à dos americanos? Aí não é preciso esperar, eles têm um empregado de escritório que trata de tudo, se tiverem o bilhete de identidade em dia, nem é preciso saber ler e escrever que o homem preenche o papel, e pagam melhor do que pagam estes aqui.
– Pois, o pior é o dinheiro para as passagens para ir a Lisboa!
– É a vida dos pobres, uns comem tudo e os outros não comem nada…
O Pirralho retomou o seu lugar, sentado junto dos outros dois. Do pequeno saco de lona de trazer a tiracolo tirou uma pequena garrafa de vinho, um naco de pão, uma lata de sardinhas em conserva e um punhado de azeitonas, com a chave de arame grosso começou a abrir a lata.
– Vossemecê pela fala vê-se que é alentejano como nós, – disse o Jaime Narciso, – mas é da onde?
– Sou de Moura, tenho lá a mulher e os dois filhos, e vim a ver da minha sorte cá para cima…
– Mas em Moura dizem que o trabalho à jorna não falta. Atalhou o António Manuel.
– Se dizem isso é porque estão pranteando mentiras! A gente quando quer trabalho vai à do mercado e encosta-se ao muro, à espera que os capatazes dos agricultores vão lá a escolher a gente, às vezes até alguns estão sentados no chão, porque a fome é tanta que o corpo deitado aguenta melhor, parece que o estômago fica mais quieto, mas nos últimos tempos nem capatazes nem agricultores, nem sequer aparecem, tal é a crise, e quem tem moços pequenos não pode ficar muito tempo parado, senão os miúdos morrem à fome; e vossemecê, amigo, é de onde?
– Eu sou de Mértola, sou meio algarvio, enxertado de gente do mar, lá de Vila Real de Santo António, de onde era a minha gente materna, e, – o António Manuel baixou a voz, a modos de não querer que mais ninguém ouvisse, – ando fugido à policia!
– Ó compadre! Os de Mértola têm cada uma! Então não se vê pela sua cara que vossemecê é boa gente! Anda agora a fugir à policia…
– Fale baixo, compadre, por amor dos seus ricos filhos! O que eu estou a dizer é verdade, ora cheguem-se os dois para cá que eu conto…
O Joaquim Silva e o Jaime Narciso arrimaram-se mais para a frente, cabeças quase encostadas à do António Manuel, as côdeas do pão seguras entre as mãos, uma, a do Jaime Narciso, com uma lasca de bacalhau cru molhado no azeite em cima, o outro, o Joaquim Silva, com a garrafa de três decilitros inclinada, quase a verter o liquido; entreolharam-se e depois, de soslaio, miraram os outros, “ Vamos antes mais para ali, que temos uma sombra melhor!” – Disse o Joaquim Silva, enfatizando o “temos uma sombra melhor” de forma que os outros pudessem escutar.
Os três afastaram-se dos outros uns bons vinte metros, para de baixo de um pinheiro de pequena altura, mas com uma grande copa que fornecia uma óptima sombra; o António Manuel levou o toro debaixo do braço, a saca da serapilheira segura na outra


