UM CRIMINOSO COM UM JOELHO MUITO MAU [I]

Como, no Inverno, as dores no joelho se tornavam lancinantes, pôs-se duas ou três vezes por semana nas mãos do Henriques, que era um massagista particular e morava muito próximo dele.
O Henriques encontrava-se no indefinido limiar entre o autêntico e competente mecânico de ossos e o mero aldrabão. Onde passava de um a outro, era difícil de perceber.
Recebia o nosso homem a secretária do Henriques, uma chinesa magra e franzina, que também sofria dos ossos (o que não seria a melhor das propagandas) e o encaminhava para uma marquise.
O senhor X punha-se em cuecas.
Henriques aparecia por fim, ainda a mastigar o almoço e a limpar os dentes com deslocações da língua no interior da boca, e atirava-se-lhe ao joelho.
Massajava-o com uma minúcia paciente; aos olhos de X, o que, precisamente, traía o seu carácter de «aldrabão» era o imoderado gosto por uns aparelhómetros incredíveis, umas cintas almofadadas que lhe envolviam o joelho e eram ligadas à corrente ou, então, uma trapalhada com um polo positivo e um polo negativo que era posta a vibrar sobre a sua dor, sob efeito de um interruptor que o Henriques manipulava um pouco empiricamente: «E agora, dói muito? Assim está melhor…?»
Havia pomadas, mais uma meia hora de massagens e o «Grand Finale», a derradeira tortura: a sauna.

Ficava numa sala sozinho, dentro de uma caixa, com a cabeça de fora.
A senhora chinesa ligava os botões, deixava-lhe uma toalha turca à volta do queixo, para que não escapasse o mínimo calor pelo orifício por onde lhe passava o pescoço para fora da caixa, e ali se deixava derreter. Estava no inferno. Suava abundantemente. Quase desmaiava.
Pensava, ao fim de uns minutos: «Vou pedir que me tirem daqui. Já não aguento mais!», mas, logo após, «Vá, só mais um minuto», e depois, «Vou gritar, já chega disto», e a seguir «Só mais um pouco», até que os dois pensares contrários, «Não aguento nem mais um pouco» e «Vou aguentar só um pouco mais» acabavam por se confundir, tornando-se num mesmo e único estranhíssimo pensamento.

Com o tempo, semana atrás de semana, o senhor X conseguia acalmar-se e apreciar aquela hora a sós consigo. Aproveitava a rara oportunidade para passar em revista os seus dias e os seus problemas.
Olhava pela janela que a secretária do Henriques, lamentando-se muito por causa das suas artrozes e artrites, deixava entreaberta para que ele se distraísse.
Um dia, perguntou-se se não veria dali a própria casa. E esforçando-se, deslocando o seu pescoço tanto quanto lhe era possível naquela prisão, compreendeu que podia, dali mesmo, fixar uma janela de sua casa e, àquela hora, assistir à chegada da sua mulher, a única mulher que odiava no mundo inteiro.
E, meio drogado pelo calor que lhe derretia o corpo mas, aparentemente, lhe vivificava o espírito, concebeu o plano perfeito para eliminá-la sem deixar qualquer vestígio.
A melhor das formas.
A forma que a sorte, a sorte de estar na sauna precisamente àquela hora, naquelas condições, lhe concedia – e que talvez nunca mais se lhe oferecesse com tanta simplicidade.

CONTINUA

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