Linhas de pensamento

Vinte e cinco de Agosto de 2015. Um ano de perfeições. A essência de se desejar e conseguir. A essência do amor, a sua amplitude consagrada. O Perfeito. Deitada no meu leito da morte, jazia a aceitação dos cinquenta anos que atravessaram o meu corpo.

 

Todos aguardavam. Aguardavam ansiosamente e com a alma angustiada o carro fúnebre que descia pela Avenida das árvores. A neblina de calor caía lentamente, obrigando os mais sensíveis a esconderem-se na sombra das árvores. A esconderem junto, o arrependimento, o nó no estômago. Era o ano, o mês o dia. O último e certo momento em que apareceria no coração de cada um. Ali passava um corpo. O meu, o fim.

Sinto calor debaixo do esquife de acabamento natural, forrado em cetim. O cheiro a novo, embala-me. Transmite-me a paz necessária para me preparar para ser colocada sobre a terra e desaparecer aos poucos, servindo de alimento. Ouço choros, gritos, gemidos. Discrimino-os um a um. Surpreendendo-me.

Ouço palavras, que fazem brotar as lágrimas acumuladas: “ até breve” Vitória, vamos ter saudades dos teus momentos, dos teus abraços e das tuas palavras. Palavras essas, que as empregavas tão bem, quando os nossos corações fraquejavam às angústias da vida”. “ Descansa em paz, estrela. Nunca nos esqueceremos de ti.” E por fim, ouço a única palavra que esperava há muito. Era ela: ” Desculpa Vitória”, se sejas feliz em outra vida , porque o mereces”.

 Imaginei os momentos que passei com a pessoa que me proferiu palavras de resignação. Senti-lhe a pulsação, forte como um abalo, um nó na garganta, e senti as suas lágrimas a trespassarem o esquife e a tocarem-me. Senti-lhe o suor nas mãos, no peito e visualizei-lhe o negro vestido justo sobre os joelhos. Os seus cabelos mal alinhados sobre os ombros e a pintura borratada que tentava disfarçar com o lenço, também ele negro, sobre a cabeça. Conseguia ver as rugas na testa a tornaram-se mais profundas, o envelhecimento momentâneo, impossível de acontecer. E reflecti sozinha, á medida que o peso de terra caía sobre mim:  

Por vezes há pequenas coisas que se tornam grandes à medida que desaparecemos. Que há pessoas que não são tomadas em conta em vida, e quando deixam de existir passam do nada a tudo, do fraco ao forte, de insignificante a herói ou heroína. Será isto uma ironia ou o peso da morte? Que os atinge como uma flexa no ponto certo onde nos colocaram um coração e começamos a ter medo de nós mesmos, da nossa mediocridade. Medo de um dia passarmos a sair do alto das nossas vidas e sermos levadas para debaixo dela, num caixão em madeira simples, que nos levará de vez para um mundo que desconhecemos e por isso, tememos. Será bom ou será mau? Uma questão que me atravessou sempre, que me corroeu a alma, quando alguém morria, novo ou velho, conhecido ou desconhecido.

Há quem diga que quando alguém morre, tem-se pena, pensa-se, fala-se dessa pessoa no momento fúnebre e depois, passado uma semana, ou mesmo um mês, esquecemos dessa mesma pessoa e passamos à fase seguinte: viver a nossa vida. Porque é curta e continua.

Eu não faço parte deste pensamento. Sempre pensei muito nas pessoas que partiam, sem me importar se ainda tinha uma vida para viver. Ao relembrar-me, era a homenagem de uma alma para outra. Um contacto. Contacto que só a minha alma entendia. E talvez, por isso, escrevo neste dia, o da minha morte, o que foi a minha existência enquanto um coração assim o quis.

Sandra Araújo

 

 

 

 

Sobre araujosandra

Autora e Psicóloga Clínica
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2 respostas a Linhas de pensamento

  1. Sublime, cara amiga e colega. Ainda que não me surpreenda a sua forma brilhante de escrever, revela neste texto uma capacidade única de se transcender para além da pessoa e do sentimento! Uma forma inteligente e madura de abordar o luto, de renovação…
    Parabéns!! Aguardo a sua próxima obra!!

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    • araujosandra diz:

      Obrigada, José. Consegue perceber e colocar-se no meu lugar, como se fosse também o narrador deste início de obra que se desenha!
      Estou a trabalhar para isto, mas o momento não é o melhor.
      Sucesso para o seu recente livro, que ainda não o esqueci e quero comprar.

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