Às vezes sinto que me afastei do mar. Costumava senti-lo cantar em todas as palavras que tingiam de azul o branco de uma simples folha de papel. Agora parece que vivo entre estações em contagem decrescente do tempo que se me escoa entre os dedos e da angústia da espera, do nunca chegar lá.
Como se mudam certas peças que definem um ser? É um labor contínuo de desgaste que, com o esgotar dos dias e dos meses se converte numa amputação silenciosa e sem dor. A pressa em que vivemos vai-nos mutilando insensivelmente, retirando parcelas de nós que deixaram de ser necessárias. No geral, esta amputação escolhe a parte de nós em que vive a poesia e a inocência.
É curioso quando contactamos com alguém, que apesar de contar mais anos do que nós, consegue manter esse cheiro a terra jovem, o que detetamos com um sorriso paternalista e mal disfarçado nas alusões a lutas idealistas de quem na verdade nada faz para mudar o estado de coisas.
Como podem estas pessoas sobreviver numa sociedade cada vez mais competitiva e aguerrida é coisa que não compreendo. Mantiveram-se inamputáveis, de um modo que não chega a ser subversivo mas antes conformado. São estas pessoas a quem ainda não foi extirpada a poesia que são incapazes de dançar em plena rua ou de soltar uma gargalhada espontânea.
Por estranho que pareça, são os outros, como eu, que se permitem essas loucuras que subvertem o sistema, a verdadeira forma de rebelião perante a vida.
Será a perda de poesia um pré-requisito de inserção? Ou estaremos a caminhar para uma outra etapa em que antes se transcende e não amputa essa parcela de nós? Em que passamos a sentir de outra maneira mas continuamos a ser apenas crianças com uma compreensão mais lata daquilo que nos rodeia?
Foi preciso ter-me cruzado com a Maria no metro para perceber a distância que hoje nos separa e a que me separa a mim da pessoa que fui quando andava na faculdade, e a verdade é que não quis falar ao meu passado.
Como adulto polido que sou, embora nada tenha que me envergonhe, atirei para debaixo do tapete a verdade inconveniente de que não sou já a mesma. Hoje sou quem sou.
Ao passado? Talvez seja melhor deixá-lo onde está, podemos não querer abrir-lhe os segredos de quem somos agora.
Ana Brilha