“As agruras do mal” – continuação

Isto acontecia naquela manhã fria mas ensolarada, uma bela manhã para aquele mês, que tinha até àquele dia sido um mês para esquecer em termos climáticos, um mês de nevões intensos, de frios insuportáveis, daqueles que nos consomem até ao cerne da alma, um mês não apenas de nevões mas também de cheias, com estradas cortadas, batidas espectaculares entre carros, tremendas filas de trânsito parado ao longo das artérias movimentadas, a mundialmente conhecida Via Veneto, aquela que a bem dizer foi a capital da moda nos anos sessenta, onde àquela hora da manhã quem se deslocava para o trabalho em carro próprio por não ter outro caminho alternativo espera e desespera, e quem se passeia com carro alugado, mormente os turistas, maldiz a sorte porque Roma, por motivos óbvios de resguardo das maravilhas guardadas no subsolo, em camadas sobrepostas que se comportam como um maravilhoso livro aberto que nos transporta na lonjura dos séculos, dispor apenas de duas linhas de metro que formam um gigantesco X, uma que circula de Laurentina a Rebibbia, a outra que vai de Anagnia a Octaviano, e passa portanto relativamente perto da cidade do Vaticano.

O ICPAR, SA é uma organização que passa despercebida entre o estapafúrdio deslumbramento publicista das grandes empresas, em particular as que são de projecção mundial.

A empresa não necessita minimamente de qualquer tipo de publicidade, dessa que tão bem conhecemos, e que nos entra pela casa a dentro via televisão ou rádio.

A publicidade vinha apenas e somente da qualidade dos seus produtos que comercializava e por isso mesmo, e por outras razões que mais adiante veremos, quanto menos se badalasse melhor seria para a esplêndida forma dos negócios. E por isto tinha a sua sede naquele palacete situado à vista do lago, dos jardins e da Villa Borghesse. Um palacete discreto o quanto possível, de acordo com os parâmetros previamente definidos que foram para a sua aquisição. Todavia, antigo, como tudo ou quase tudo o que constitui o lado notável em Roma, estava extremamente bem conservado, dispunha de amplos salões, um maravilhoso e amuralhado jardim, – amuralhado para sem dúvida se subtrair aos olhares indiscretos – um recheio de obras de arte, autênticas relíquias produzidas e assinadas pelo punho dos grandes mestres, aqueles que ainda maravilham o mundo, que ainda não foram igualados, como Bernini, Borromini, Bramante, Frei Angélico, Rafael, Caravaggio…

O genial gosto do administrador delegado, do mestre presidente administrador fundador e principal accionista, sempre ausente de corpo mas presente em espírito, e dos restantes administradores responsáveis pelos vários e diversos pelouros do governo e da gestão, desde a produção dos artefactos e dos símbolos, até aquele que carregava nos ombros largos a área das finanças e aquele outro que se responsabilizava pelas relações públicas internacionais e intercontinentais, o gosto pelo belo, pela arte, pela requintada mas também austera decoração que por todo o lado se notava, desde os gabinetes pessoais até à majestosa sala de reuniões da assembleia magna. O superior gosto estava bem patente naqueles quadros, nas esculturas, na qualidade impar daquele jardim que maravilhava quem quer que o pudesse ver.

O palacete estava situado bem perto do topo de uma das colinas que servem de leito à cidade. Espraiando a vista através das vidraças amplas via-se um pouco da Piazza del Campidoglio, que foi desenhada pelo incomparável Miguel Ângelo, e onde se situaram os templos pré-cristãos dedicados a Júpiter e Juno. E era um regalo para os olhos a estatuária, que, avulsa e dispersa no cimo das coberturas dos edifícios, muitos cheios de história, ilustra a sensibilidade que corria no sangue que enchia as veias dos escultores romanos, e aquelas esculturas que se avistavam dali, daquele privilegiado topo da colina, polvilhavam de beleza os telhados naquela cidade universal que na verdade não é apenas dos romanos nem só italiana, a Roma universal e única, a inigualável, acaba sendo de todos nós, prioritariamente daqueles europeus que receberam a dádiva da sua cultura, da sua universalidade, assim como da Grécia o pilar, o farol da Civilização do ocidente que, junto com a já tecnicista Roma com o seu direito, as suas construções e os seus exércitos vinculou-nos no seu mundo, contribuiu para a nossa desmedida ânsia de saber cada vez mais.

É certo que foram civilizações construídas com base na escravatura, base principal e de maior importância do sistema económico vigente na época, – e não só, se pensarmos bem, nos dias que correm de igual modo nos escravizam de alguma forma, ou pelo dinheiro que não enche os bolsos de todos por igual, e se fosse ao contrário o desastre seria de gravidade impensável, ou enchem-nos as cabeças com as ideologias mais estapafúrdias que imaginar se possa, sem perceberem que nós, homens e mulheres afinal de contas somos o que somos, a força da natureza é imensa e tanto nos dá os maus como os bons – logo, neste nosso século e apesar das idas e vindas à lua e ao fundo dos mares, e embora se respeitem as ideias de todos, foram as ideias que fizeram avançar o mundo, na verdade a escravatura tal como a falta de escrúpulos são os meios sempre utilizados para alcançar os fins. Não interessa saber o que aconteceu primeiro, se o ovo ou a galinha, o que importa é que estão ambos por cá e não conseguem subsistir um sem o outro.

Pois naquela manhã gélida mas ensolarada, naquele amplo salão de paredes forradas a madeira preciosa, com os tectos trabalhados em estuque, repartidos em uma espécie de mosaicos contidos por dentro das réguas de estuque, qual quadricula, pintados mostrando anjos e querubins, figuras de homens de idade indefinida com longas barbas brancas e cabelos igualmente brancos, soltos como que esvoaçando ao vento, envoltos em vestes que não se percebe se são túnicas, nem uma natureza morta, nada de paisagens, nada de figuras representando animais. Um tecto pintado de cores suaves que traziam uma tranquila paz de espírito. O administrador delegado do ICPAR, SA, totalmente vestido de branco, um facto de bom corte, uma camisa e uma gravata brancas, sapatos a condizer e uma espécie de quipá colocado no alto da cabeça, no local preciso e exacto onde os padres têm a tonsura, sentava-se na cabeceira da enorme e larga mesa, voltado para a ampla janela que mostra as cores e a grandeza de Roma, banhada pelo ténue Sol de inverno que não consegue vencer o gelo trazido pela noite e por aquele tempo desaustinado onde as chuvas e os nevões têm sido o timbre do dia-a-dia, desde o inicio do mês.

Ao longo da enorme mesa dispostos segundo uma devida ordem, sentados nas cadeiras com espaldares altos, suficientemente grandes para lhes ocultar as cabeças, se situavam os restantes administradores, mas estes vestidos de negro e ostentando quipás de cor vermelha.

O conselho de administração ia dar inicio à sessão destinada à avaliação dos resultados alcançados no ano transacto. Os documentos criteriosamente arrumados na frente de cada participante. A ICPAR, SA – Investimentos Comerciais de Produtos e Artefactos Religiosos, Sociedade Anónima de Responsabilidade Lda., – reunida na sua sede privada, no salão nobre do palácio a que modestamente se referiam como o palacete, onde uma réplica pintada em quadro de grandes dimensões representava Francisco Barberini, e, no lado oposto, esculpida em mármore, outra réplica mostrando Enéas, Anquise e Ascâneo, ambas obras de Bernini, ladeavam com quadros e estatuetas da autoria de autores clássicos também e indubitavelmente célebres. Todos aqueles homens eram afinal altas figuras do clero católico, apostólico e romano, incluindo o papa, Inocente I, e o que lhes escondia as tonsuras não se tratava de quipás mas sim de solidéus. Depois de uma breve oração, o reverendo cardeal administrador responsável pela área das finanças e autor do relatório de apresentação, um livro razoável no seu numero de páginas, tais como trezentas e catorze, encadernado a pele gravada com letras douradas que, em tamanho de caixa numero dezoito, diziam exactamente, na primeira linha, em destaque, ICPAR e por baixo, Investimentos Comerciais de Produtos e Artefactos Religiosos, e, na linha seguinte, por baixo, Sociedade Anónima de Responsabilidade Lda., e ainda mais abaixo, na linha seguinte, Relatório e Contas Referente ao Exercício do ano de 2009.

A ladainha dos números decorria em voz monocórdica, sempre no mesmo tom, nunca nem mais para baixo nem mais para cima, e todos os restantes administradores seguiam o conteúdo lendo em silêncio os livros que, para o efeito, previamente algum padre menor havia disposto frente a cada cadeira.

Raramente a leitura ficava interrompida para uma análise mais detalhada e esclarecedora pretendida pelo Sumo Pontífice, prontamente atendida pelo cardeal administrador responsável pelo pelouro das finanças. Não é que qualquer dos presentes não pudesse de igual modo pedir esclarecimentos e por tanto interromper a sessão; para o efeito bastava-lhe pigarrear um pouco, chamando a atenção, enquanto que ao Sumo Pontífice bastava agitar levemente uma minúscula sineta, mas a sociedade daqueles homens não se limitava a uma modesta democracia, nada de ilusões, as regras herdadas da velha Grécia são lindas mas no papel, o milenar espírito que preside à organização lupina nas mesuras e nas vénias, nas expressões inexpressivas, no acentuar a cada momento o poder do chefe, o segredo da estabilidade eterna.

Terminada que foi a leitura e depois de um breve acto de contrição rezado em surdina porque haviam tratado e discutido coisas relacionadas com dinheiro, quanto rendeu o exercício da venda dos rosários, os por benzer e os já benzidos, pouco mais caros porque poupam tempo ao comprador, por norma umas castas senhoras mães de família, a perca de tempo gasto na deslocação à igreja a ter com o senhor padre, quanto se realizou na venda dos crucifixos, os pequenos, os médios e os grandes, os benzidos e os por benzer, qual a receita com a venda das medalhinhas com as feições dos santos gravadas, como ficou a receita dos frasquinhos da água benta, em que pé ficamos com a dificílima tarefa de atribuir um valor correcto à colheita das caixas das esmolas, – cujo conteúdo no antigamente se dizia que se destinava para as alminhas, – para a partir daí calcularmos com exactidão a percentagem que cabe à sede, de ano para ano e à medida que aumenta a separação entre o poder politico e o divino, com a carestia de vida que vai por esse mundo fora e que os padres sentem porque também são gente, o que fazer com a necessária protecção para a segurança dos tesouros guardados nas igrejas e que tanta cobiça despertam nos ladrões internacionais que rondam os lugares sagrados por esse mundo adiante.

E enfim, toda a imensa gama de produtos de outra espécie e género, os milagres que se originam nas peregrinações aos santuários Marianos, que são muitos, espalhados pelos quatro cantos da terra. As leituras litúrgicas, as bíblias, as biografias dos santos, as mais célebres homilias dos santos padres, os luxuosos trabalhos feitos em marfim pelos mais hábeis dos crentes africanos, de tudo se vende nos santuários Marianos.

Em qualquer canto do mundo, México, Brasil, Portugal, Polónia, Itália, – seria inevitável, quase absurdo se não existisse um santuário, seria como se a Itália, – segundo berço da fé cristã, onde se destronou o maquiavélico império dos Césares, – fosse nos primórdios da era cristã esquecida por Deus, – Rússia, Índia, Vietname, Japão, Costa do Marfim, Algéria, Alemanha, Inglaterra, França, da modesta aldeia de Nazaré da Galileia, berço natal onde o Anjo Gabriel anunciou a Maria a Boa Nova, a adoração à Mãe de Cristo se dilatou graças à sentida libertação que empresta a todos os que sofrem e são espezinhados pelos outros. Pena é que tudo se projecte para depois da vida, para a além vida, para o outro lado. Bem-aventurados sejam os pobres de espírito pois deles será o Reino do Céu.

Como em tudo o que o homem faz, raramente se programa ou prevê a longo prazo as consequências, nos dias que correm muitos pobres de espírito chegam ao topo da política e chefiam países. Será que o Reino dos Céus é só para os restantes, que são milhões de milhões, ou também se estende a estes? Se a resposta engloba todos, não seria de excluir a ideia de perguntar aos milhões de milhões se têm mesmo de aceitar o benefício divino de habitarem o Reino do Céu…

Escutando os crentes, eles dizem que do Céu nunca vieram ventos de revolta, mas sim paz e contemplação. Quando a sagrada bíblia nos descreve a ira de Nosso Senhor Jesus Cristo contra os vendilhões que no templo em Jerusalém desrespeitavam o sagrado recato indispensável à comunicação com o divino, – ou à tentativa de a estabelecer, – desnecessária a meu ver, porque o poder divino deve de atender os homens por igual, e sempre que os homens, pobres ou ricos, santos ou pecadores, não invoquem o Seu Nome em vão, foi porque o templo é o local próprio para o dito recato, a oração e o fervor da fé, e não porque alguma vez lhe tivesse passado pela razão privar os homens de ganharem o sustento de cada dia com o suor do rosto. Não há, portanto, negócios que

Sobre jsola02

quando me disseram que tinha de escrever uma apresentação, logo falar sobre mim, a coisa ficou feia. Falar sobre mim para dizer o quê? Que gosto de escrever, (dá-me paz, fico mais gente), que escrever é como respirar, comer ou dormir, é sinal que estou vivo e desperto? Mas a quem pode interessar saber coisas sobre um ilustre desconhecido? Qual é o interesse de conhecer uma vida igual a tantas outras, de um individuo, filho de uma família paupérrima, que nasceu para escrever, que aos catorze anos procurou um editor, que depois, muito mais tarde, publicou contos nos jornais diários da capital, entrevistas e pequenos artigos, que passou por todo o tipo de trabalho, como operário, como chefe de departamento técnico, e que, reformado, para continuar útil e activo, aos setenta anos recomeçou a escrever como se exercesse uma nova profissão. Parece-me que é pouco relevante. Mas, como escrever é exercer uma profissão tão útil como qualquer outra, desde que seja exercida com a honestidade de se dizer aquilo que se pensa, (penso que não há trabalhos superiores ou trabalhos inferiores, todos contribuem para o progresso e o bem estar do mundo), vou aceitar o desafio de me expor. Ficarei feliz se conseguir contribuir para que as pessoas pensem mais; ficarei feliz se me disserem o que pensam do que escrevo… José Solá
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