Crónica da Brilha – “A banda dos tristes”

 

 
Deram ao Homem o engenho de poder fabricar uma faca e ele aprendeu a cozinhar e a caçar. Certo é, porém, que parte deles aprendeu também, não se sabe por que artes, a usar esses utensílios contra os seus semelhantes. Tudo depende, pois, da mão e do carácter por detrás dos instrumentos que são colocados ao nosso dispor.
 
Depois de ver uma imagem que circulava em notícias, blogs e redes sociais, de certa notável e nobre personalidade pousando orgulhosamente para a fotografia defronte do troféu que acabava de matar, compreendo a onda de indignação que se gerou.
 
Apesar de ser defensora acérrima das tradições, não posso aceitar qualquer delas que implique trazer a morte ou o sofrimento – seja ele físico ou psicológico – a outro ser. Não posso aceitar que sob as vestes da diversão se oculte um acto cobarde e violento.
 
Revoltamo-nos contra a excisão, o apedrejamento, a pena de mão cortada. E contra a chacina inútil de um ser que mal se pode defender contra armas de fogo?
 
Orgulharmo-nos de, usando todos os engenhos de que nos rodeámos para supostamente nos afastar da nossa bestialidade, ser o mais prolífico dos vírus, e eis-nos ainda mais em contacto com ela ao valermo-nos de apensos para melhor afirmar a nossa superioridade sobre os irmãos com quem partilhamos este pedaço de terra em que vivemos.
 
O que nos distingue deles? Não sei bem. Ensinaram-me que seria a linguagem, mas alguns deles sabe-se hoje que também comunicam. Ensinaram-me que seria a alma intangível, mas se formos olhar à genética somos feitos da mesma matéria.
 
Certo é que não há qualquer honra em provocar sofrimento, não há qualquer vitória em recorrer a subterfúgios, superioridade numérica ou trapaças para quebrar as regras.
 
Diferente é a necessidade da sobrevivência do gáudio inútil de um troféu morto. Não há silêncio que pague este desequilíbrio.
 
Matar por prazer, por cobiça, e não por necessidade de sobrevivência, cria mártires e é um ato tão desumano que nem as bestas ousam tal coisa.
 
Se pretendemos julgar-nos superiores nestes esforços de passar o tempo, que o façamos com as nossas presas, com as nossas garras, e não com uma inteligência maior que fica muito a dever à superioridade moral.
 
Não vou comentar a mui nobre tradição da tourada que desde a celeuma de Barrancos não mereceu ainda um minuto de descanso, não vou opinar sobre os safaris em que se deixa tombar um animal inocente para ter mais um pinchavelho para pendurar na sala. A falta de sentido de tudo isto é não haver espaço para a verdadeira misericórdia que é deixar viver quem nos deixa viver.
 
O que justifica esta luta contra natura? Que motivo é este, que desconheço, que nos confere este poder sobre os animais?
 
O preço deste desequilíbrio que fomos virulentamente imprimindo à terra pagamo-lo todos os dias desde que nos fomos afastando da nossa verdadeira essência, seres alquebrados, frágeis, doentes, que lançam ao alto as suas culpas, certos de que não se importam com a herança que um dia hão de deixar.
 
Nesta sofreguidão de consumismo, somos talvez o mais triste dos animais, anjo caído do paraíso, roído de inveja desses tempos em que caminhávamos intimamente ligados ao ciclo das estações.
 
Seja como for, o que não posso é perdoar essa cobiça de matar sem porquê, por isso aqui deixo, em sinal de protesto, as sábias palavras de Vicente Sanches e que rezam mais ou menos assim: há por aí muitas pessoas podres, sujas e lazeirentas e que não habitam em baixo mas em cima da terra.
 
Ana Brilha
 
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