Lá fora Orácio ouve o chuviscar constante daquela chuvinha marota que insistentemente bate no telhado das casas, molhando as relvas que enobrecem as pracetas floridas das pequenas aldeias, onde os “jovens” senhores jogam cartas de baralho e um dedo de prosa fora. Esta mesma chuvita tenta mudar o cenário atmosférico, quase sempre sufocado pelo suspiro agitado da gente natalina, naquele vai e vem pelas ruas e centros comerciais das grandes cidades a olhar as montras sem se decidir que presente comprar. Sem dúvida é uma tarefa difícil!
Parece mesmo que as pessoas se reduzem a meros e tradicionais consumidores de época. Quanta gastança! Suspira ofegante o Menino Jesus. Mas, consola-se ao pensar que haverá nas igrejas a Missa do Galo onde os missionários da fé entoarão o seu nome nas orações e nas músicas ternas do Natal.
Em algum sítio existirá alguém sozinho, pensava Orácio enquanto apressava-se para sair de casa e enfrentar a chuva que caía forte e amiúde. Com passos largos e descompassados subiu e desceu ruas estreitas e lambuzadas de sujidade canina, rumo à Avenida Alta cheia de prédios que outrora foram opulentos e majestosos.
Por fim, parou e subiu a calçada de um deles. Um prédio com uma beleza estéril, porém trançado por uma envelhecida estátua gótica que convidava os passeantes a viajar no tempo de uma época de glórias e opulência já há muito esquecida.
Com um sorriso largo e com um ar de bem amado exclamou: Pois sim, é deveras neste sítio que passarei a noite de Natal, junto da minha família. Era a casa da sua irmã mais velha. Apesar do contentamento, crispou-se ligeiramente ao pensar no seu jeito próprio de ser, pois era sem dúvida, uma mulher imponente e extravagante, um pouco cruel até. Um poço de orgulho!
Ela o recebeu com carinho, o que lhe pareceu estranho, é verdade, mas logo atentou para o fato de ser um dia especial, um dia para dar graças a Deus por todas as bênçãos recebidas. Um dia em que todos se confraternizam, dispostos a esquecer os maus tratos e até as diferenças sociais, ainda que somente por uma noite.
Dado o seu conhecido talento culinário e a pedido da sua irmã, dispôs-se logo a preparar a ceia natalina. E o fez com amor, esmero e perfeição. Mais tarde, depois de terminar tudo iria até à sala cumprimentar os demais convidados e desfrutar dos prazeres da ceia interagindo com todos. Era um ambiente de festa e, ele observava a doçura da mana, como na velha infância. Falava-lhe com mesura, embora por meio de frases lacônicas. Nem por isso sentia-se triste, mas estava inseguro e meio desconsertado, um quê de ressabiado. Talvez por ter sido sempre tão marginalizado do seu meio social. Não estava a altura de fazer parte dele, pois lhe faltavam traquejos e posses, tal como o meio exigia.
Ah, os laços sanguíneos! Pensava. Bem podem romper-se por vezes! Principalmente, quando as nossas vidas se transformam em noites chuvosas e incertas. Olhamos ao redor e nos sentimos sozinhos. Quase sempre as lágrimas banham-nos o rosto e a alma, então confundem-se com as gotas da chuva que murmuram lamúrias ao vento lá fora.
Sacudiu a cabeça como que para afugentar os pensamentos sombrios.
Ei-la! A mesa estampada no meio da sala, prestimosamente enfeitada com os saborosos pratos preparados pelas mãos mágicas de Orácio. Ele se sentiu verdadeiramente bem em compartilhar deste momento com a anfitriã. Ela exibia com orgulho aos seus convidados o exuberante e farto gourmet que ele fizera.
É chegada enfim, a hora da ceia. Todos se aproximaram da mesa, incentivados pelo sorriso e o exótico espalmar das delicadas mãos de sua irmã. Vamos! Sirvam-se todos!
Ela aconchegou- se sorrateiramente do seu irmão, antes que ele chegasse à mesa e disse-lhe: Tu não participarás da ceia. Esperas na escada, pois levarei em seguida um prato feito para matares a tua fome. Tenho muitos convidados importantes e tu não me estragarás a noite com a tua aparição. Dá-me muita vergonha apresentar-te como meu irmão.
Orácio percebeu naquele momento que cada palavra por ela pronunciada era um símbolo que representava as emoções mais profundas de sua alma rota e odiosa.
Nada lhe disse, pois preferiu que as suas palavras ficassem soltas no ar para não ter que interpretá-las.
Sentou-se nas escadas. A sua mente afogou-se no negativismo e a sua fé nas pessoas esmoreceu-se.
Passado o choque inicial, só lhe restava descer as escadas. E, fê-lo. Mesmo trêmulo e decepcionado pisava em cada degrau esforçando-se para livrar-se da chuva triste que inundava o seu coração e lembrar-se do brilho do sol, pois assim reviveria o calor do amor. Do amor fraterno, do amor natalino, do amor contido mesmo nas migalhas das pequenas coisas da vida, a fim de não se sentir por inteiro um ser rejeitado.
Novamente tatuava com o seu rasto as pedras da calçada do prédio. Transpirava um suor frio que se fazia sentir em sua alma molhada e cruelmente nutrida por um silêncio mórbido e perdedor.
A cada passo que dava tomava ciência do grande vazio e quão vulnerável se encontrava. Estava tão predisposto a aceitar as mais inimagináveis agruras e inconveniências surtadas da vida
Vagarosamente olhou para o céu e viu nas estrelas o brilho sereno dos raros momentos de reflexão do homem.
Algumas lágrimas teimaram em roçar o seu rosto enquanto constatava entre soluços a sua condição de um mero espectador da vida. Ao mesmo tempo relutava em não fincar no seu coração rastos de amargura e, timidamente rezava: Senhor, desperta-me para a vida. Abstém-me da inércia. Apaga do meu coração a dor que enrijece as suas batidas e o emudece para cantar. Cantar a música preciosa da paz. Permita que eu seja capaz de acordar e fortalecer os meus sentidos vitais, pois agora dormem assustados e com receio do amanhecer. Peço-lhe ainda que, se ao despertar, senti-me envolto no desespero, não deixe que da minha boca escapem palavras desnecessárias e amargas.
Ao levantar a cabeça Orácio dá somente um passo. Exausto fecha os olhos e sente a brisa fria da noite. Perto de si ouve em tom de alegria: FELIZ NATAL! FELIZ ANO NOVO!
E, mansamente ele responde: PARA SI TAMBÉM!
Você que tem no seu lar, na sua família um enjeitado, ou como se diz por aí, a “ovelha negra da família”, não o marginalize.
Quem sabe ele possui qualidades inesgotáveis, similares ou melhores que a sua e, apenas não são exploradas convenientemente.
FELIZ NATAL E FELIZ ANO NOVO À TODOS!
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(por Marifelix Saldanha – Autora do livro: Histórias Vividas em Prosa, Sítio do Livro, 2011)