O homem vestindo de negro vem caminhando com lentidão junto à borda da água, pela terra dos sapais. Um indivíduo alto e seco, que arrasta os pés num avançarem trôpego, um homem que se aproxima de solidão como companheira de todos os dias. Na cabeça protege-o do Sol impiedoso um chapéu preto de abas pouco largas, na memória são as ideias passadas que ainda o vão protegendo da vida.
Chama-se João Boa Brisa, é homem do rio e também homem do mar, realidade que se mostra impressa nas suas faces, num rendilhado de sulcos misturados com uma barba pequena de pêlos ásperos e brancos, e as mãos, (quem lhes toca), sente uma pele dura de calos que nasceram a puxar redes, e a trabalhar com madeira ou ferro. É gente de trabalho, ou foi, porque de ligeireza já não dispõe de muita, mas de passado é rico, pelas histórias que conta de quando em vez, a quem se dispõe a escutá-lo.
João Boa Brisa tem olhos sagazes. Pretos de carvão. Brilhantes como raios que furam a noite. Transporta dentro de si a recordação de um mundo que foi desfalecendo com o passar da vida, que já pouco lhe pertence, que se escapou pelo desfiar dos anos, e só deixou recordações, como sempre, umas boas, outras más, lembranças feitas de choros e de risos, de tempestades e de calmarias, tardes de Sol que passou a espreitar as águas negras de um rio de mistérios mas também de amor.
Vem por entre os sapais e por vezes pára. Olha o rio com vista arguta de homem entendido, enche os pulmões como quem prova o ar, vê o voltear das aves mais além, a rodopiarem sobre uma mancha mais escura que se percebe na água, perto de uma língua de areia emergente do líquido. Em certas alturas pára e baixa-se, tocando a flora rasteira que se mostra entrançada de raízes. Pega um seixo rolado alisado pelas correntes do tempo e segura-o na mão, admira-o como velho entendido, e logo o lança para a água, onde um círculo de ondas pequenas se desvia, e um ruído vem da água, como se o rio entediado, disse-se “Não faças isso, porque é que andas sempre a atirar-me pedras?”
Outras alturas são aves pequenas que fogem dos ninhos. Parecem bandos de mulheres ansiosas que vão ao cais na espera do seu homem que foi ao mar na faina da pesca, e por ali ficam, volteando, em amplos círculos, a ver se a tempestade se foi. Outra ocasião desequilibra-se, pisa um pedaço de terra que se inclina para um rego de água, mais abaixo, um tudo-nada, uns dois ou três palmos apenas, mas finca os pés e vai de mansinho, aos poucos, sem pressas que a vida espera, o tempo dá-se ao tempo, com toda a lentidão de que o mundo sem horas dispõe, no silêncio comprometido de vagares, e com um passo largo (que ninguém espera), desliza foito para a outra língua de terra que o manda em direcção ao cais.
Quem é João Boa Brisa? Homem que não assenta arraiais por muito tempo no mesmo sítio, mas que volta sempre, de quando em vez, como ave que arriba para onde dá o bom tempo. João Boa Brisa é um velho que tem muito para dar; não e apenas solidão e tristeza. Tem carinho e ternura, que viaja pelas suas palavras quando narra aventuras. E ele narra sempre aventuras; ele viveu nos longes do mundo o pão duro que amassou e comeu. Venceu frios de gelo de morrer e queimaduras de Sol impiedoso. Viveu sedes e cansaços, vertigens de dar e de receber, mares de palha com velas tombadas no convés dos barcos, e montanhas de água das que engolem gentes. Das que engolem tudo. Ele é um homem feito de fatias de dor e de alegrias construídas de coisas pequenas e simples…
João Boa Brisa é homem que nunca fala em Deus; não sabe se sim se não, se é crente ou descrente. Como indivíduo foi educado na fé católica quanto baste. É por tradição das palavras um filho de Deus, mas, se o questionam sobre os assuntos da alma, João diz: “Isto, quando morremos, o nosso corpo arrefece, o sangue seca-nos nas veias, ficamos tesos como um carapau e vamos a dar outro tipo de vida à terra.” Ou então argumenta: “Se ele existe e amanha os pobres, que venha cá a pagar-me as dívidas que eu sou pobre.” Ou ainda: “Porque me levou os filhos tão cedo, O desnaturado.” Ou mesmo: “Fica muito caro para as minhas posses, não posso ter esse luxo.” E o Outro, sentado num trono de mariposas embalado pelo canto das sereias, de tridente em punho e coroa feita de búzios na Divina cabeça, como convêm a um deus dos homens do mar, se acaso o escuta, se acaso existe, se não se limita à conveniência de certos homens, grita-lhe lá das ondas revoltas do oceano: “Ó João, não fale do que não sabe!” E depois, passada que é a excitação de falar para os homens de uma maneira tão directa, sem a interferência dos santos que O representam na terra, acrescenta: “Dei aos burros uma qualidade que apareceu agora nos homens, a teimosia. Porque falam eles do que não sabem?” (E assim o Senhor esquece um pequeno pormenor, é que fez os homens à Sua Imagem.)
João está no sopé da muralha que separa a terra firme do rio, já pisa essa barreira de pedra feita pelos homens; sobe a pequena escadaria que o leva ao topo. Para trás fica a curta língua de sapais e no seu limite, pousada no leito a descoberto por via da praia mar, tombada um pouco de lado, de vela recolhida e presa no mastro, de cores feitas de azuis, vermelhos e brancos, fica a fragata de bojo largo que é a casa que João utiliza nas suas andanças pelo rio.
O rio, os sapais, o casario da margem, as praias de areal misturado com cascas de conchas vazias, a brisa que vem das distâncias do grande mar ali próximo, o pôr-do-sol que avermelha o céu, as garças e os bandos de flamingos, as gaivotas que espreitam do alto as águas em busca de alimento, aquela cor rósea que tapa o Sol quando este se deita na curva do horizonte, são afinal a grande casa de João. Ele vive num palácio feito com um pouco de tudo. De vento e de chuva. De Sol quente e de frio de gelar. Ele é homem de mar, com olhos de água e rosto de sal, com alma feita de muitos mundos.
Mas João está velho. É certo que é um velho num mundo de velhos, por isso e apenas por isso devia de ser um entre tantos, alguém que nunca se espera, e que entedia os jovens, com as suas conversas feitas de passados, de pedaços antigos de história, conversas trazidas à vida, retiradas do bafio dos anos. Mas João é singular, é único. João viveu por muitos velhos, por muitas vidas. “Olhem, não façam caso, é velhote”, dizem uns. “É impertinente, parece que sabe mais do que os outros todos.” “É da idade, não se liga.” “Homem, lá por ser velho pode dizer tudo que lhe vem à boca?”
E este distanciamento que os anos trazem, e que vão afastando as gerações, como se carimbo de marca fosse para desigualar os humanos, afecta João, porque ele ainda tem muito para dizer, é tipo que, quando abre a boca, lança para fora muitas verdades que mostram o rumo que a vida vai tomando.
Do topo da muralha até à venda são dois passos, (um dizer de hábitos), e na calçada que agora pisa, João caminha arrastando um pouco os pés. Bamboleia, parece que dá jeito de ginga, como se de um convés de barco medisse forças e equilíbrios com os balanços do mar.
Mas de dores esquecidas são feitos os reumáticos de João, que os derrota, os leva de vencida, por forças de vontades que lhe vêm de dentro, onde ainda é jovem; o velho dono da venda recebe João com um abraço forte.” Há que tempos, homem, por onde tens andado que nunca mais apareceste.” “Por aqui e por ali.” Responde. “Já me conheces, já sabes como eu sou, um homem de rio.” “Pois, mas a gente preocupa-se, és um amigo de longos anos, quantos, lembras-te?” João franze a testa e chama a memória, num sobrolho que se carrega no seu velho arquivo, no livro das velharias feitas de tempos. “Cinquenta, cinquenta e cinco, práí, mais ano menos ano…” “Pois,” diz o dono da venda.” A Clarissa tinha feitos trinta e oito anos quando se divorciou, e ao tempo que isso já foi. Deves de estar com a razão” “Fazes-me um avio?”Inquire João.
Do bolso surrado do casaco preto tira um papel grosso dobrado em quatro. “Está tudo aí. É tudo o que preciso enquanto espero que a maré suba.” “Visita de médico?” “Volto para casa. A catraia precisa de umas pinturas, e no estaleiro é que tenho condições para fazer um trabalho capaz. A catraia é a minha vida, sabes. É o que tenho, o que me resta. Há dias que acordo com um calafrio quando durmo dentro dela.” “Então homem?” “Nada de mal. Às tantas parece-me que ela fala comigo. Vê tu o disparate.” “Pois é, os barcos não falam.” “Claro, eu sei, e é por saber isso que sei que não estou louco.” “Andas só faz muito tempo, precisas de companhia, de gente. Porque não ficas cá por casa uns tempos?” “Porque não sou capaz de dormir em terra. Faz-me impressão. A terra não me abana, não me embala, não tem aquele zzzzzz da água durante a noite, sempre que a corrente vem e estica o ferro que firma o barco ao ancoradouro.” “Percebo.” Diz o outro. E continua: “Para quem nasceu num barco é assim.” João responde: “É, dás-me um café enquanto espero?” “Homem, claro.”
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